A campainha gritou friamente

Escrevi um conto, inspirado nessa tirinhaNilo Garcia Silveira

 

A campainha gritou friamente
Numa noite de sexta-feira, uma tênue luz que parte de uma vela que se esforça para fulgurar o triste cômodo tomado pelas sombras. Uma sala com poucos móveis, uma família trocava olhares vazios e distantes, todos em um sofá seco. Uma situação bem diferente de um tempo atrás: um lar vívido, caloroso, confortável e até com certos mimos.

Um calafrio tomou conta de todos os pálidos residentes, quando a campainha soou inesperadamente. Esse era um fato inusitado, apesar de no passado ter sido muito rotineiro. A residência recebia várias entregas e visitas. Mas isso já havia ficado no passado, e a campainha tinha se calado, principalmente depois que a energia elétrica fora cortada.

A criança saltou na frente, impulsionada pela curiosidade, e os demais resistiam em o seguir, por receio. O vento deixado pelo rastro da criança provocava uma revoada de contas vencidas que estavam pousadas pelo chão.

A porta abriu timidamente e encontraram um entregador com um caixote nas costas. Não notaram que esse era diferente dos outros; porque nunca notaram os demais entregadores: esse não tinha cabeça.

Ele depositou calmamente seu caixote térmico no chão e o abriu. Mas ao invés de retirar uma refeição, uma pizza ou um refrigerante; ele começou a empurrar violentamente cada residente pela cabeça para dentro do seu caixote. Lá dentro, a família se acotovelava no meio de uma multidão que já estava por lá. Um asfixiante caixote, seco, vazio, insosso.

Então, ele sutilmente lacrou seu caixote térmico, acomodou cuidadosamente às suas costas, e partiu para sua próxima entrega, saciado. Deixou a porta desavergonhadamente aberta, os corpos secos, as almas vazias e a casa fria.

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