Pelé não deu apenas gols e títulos ao Brasil. Deu um lugar no centro do mundo

Soccer Football - FIFA World Cup Qatar 2022 - Round of 16 - Brazil v South Korea - Stadium 974, Doha, Qatar - December 5, 2022 Fans inside the stadium hold up a banner of former Brazil player Pele with the message get well soon REUTERS/Paul Childs TPX IMAGES OF THE DAY
Homenagem a Pelé durante jogo do Brasil contra a Coréia do Sul na Copa do Qatar. Foto: Paul Childs/Reuters
Sabia muito pouco ou quase nada sobre futebol quando o Brasil foi eliminado da Copa da Itália em 1990, gol de Caniggia, jogadaça de Maradona.

Mas, aos sete anos de idade, já tinha dimensão do que significava o Pelé para o futebol. A ponto de protestar, durante dias após a derrota para a Argentina, pelo fato de o maior atleta de todos os tempos não ter sido convocado para salvar a seleção de seu destino: a desclassificação precoce nas oitavas-de-final.

Os adultos me explicavam que Pelé já tinha quase 50 anos, celebrados meses depois em um amistoso em que vestiu mais uma vez a camisa da equipe canarinho.

A imagem, na TV, de Pelé em campo alimentou minha obsessão por anos. Perdemos em 90. E em 86. E 82. E 78. E 74. Poderíamos ter ganhado todas aquelas Copas com uma fórmula simples, eu imaginava: bastava botar o Pelé em campo.

Meus amigos da rua e eu não tínhamos ideia ainda do que era linha de impedimento, falta para cartão, esquema tático. A gente não sabia sequer a diferença de um meia e um atacante. De um 9 de um 7. De um ponta e um lateral. Tudo isso era um universo ainda acessado, com códigos próprios que levaríamos um tempo para assimilar.

Que o Pelé era o maior de todos a gente sabia.

Definir o momento exato em que aprendemos isso, assim como assimilamos o ato involuntário de respirar, era um mistério.

Pelé estava reinava por essas terras muito antes de a gente nascer. Estava em todos os lugares, como o Cristo Redentor aos olhos de um visitante: no boneco de plástico que meu avô guardava em cima da estante na sala desde a Copa de 70. Nas figurinhas do meu pai e dos meus tios. Nos pôsteres. Nas capas de revistas. Nas reportagens da TV.

Pelé simplesmente existia e era onipresente, sem que nos fosse apresentado formalmente. Ele simplesmente estava lá, como estavam as estrelas acima de nossas cabeças, o sol, o vento, o mar, a areia.

Um brasileiro, quando nasce, aprende a respirar na marra, chorando. E aprende na sequência que Pelé foi o maior de todos e quanto a isso não existe questionamento. Maior no esporte? Não, maior em tudo.

Aos poucos as testemunhas que um dia viram Pelé em campo foram saindo de cena. Em qualquer roda de adultos havia sempre alguém disposto a contar os feitos do Atleta do Século em alguma partida no estádio de nossa cidade, a Fonte Luminosa.

Dele soubemos sem ver, embora vimos muito, graças ao trabalho incansável, de ourives, de cineastas como Aníbal Massaini Neto.

Sabíamos do dia em que ele chapelou metade do time do Juventus, na rua Javari. Nós reconstituíamos as cenas em nossas cabeças muito antes de o gol ser reproduzido pelo computador.

Sabíamos do tri, dos passes, dos mais de mil gols e dos quase gols no México, em 70.

Pelé era a imagem de um país possível, que falava orgulhoso lá fora e em qualquer lugar. Viemos do país de Sua Majestade.

Quantas e quantas vezes um brasileiro não viu as portas se abriram por andar longe de casa, nessas ilhas cheias de distância, com uma camisa amarela de seu país? Essas portas abertas são apenas algumas das muitas dívidas que jamais pudemos pagar em vida a Pelé.

Como definiu o rapper Emicida, o artista que hoje talvez expresse melhor os conflitos do Brasil contemporâneo, a memória sobre os feitos de Pelé era tão poderosa que parecia que ele ainda estava em campo. Por isso muitos de nós –ele, inclusive – nos revoltávamos quando o técnico, qualquer técnico, não o escalava, mesmo muito tempo depois de ele se aposentar para o futebol.

Em uma fala iluminada, feita alguns anos atrás, Emicida lembrou que Pelé ousou ser rei no país mais racista do mundo. Um país destruidor de super-heróis. Um país onde o sucesso é ofensa pessoal – e um crime hediondo quando se trata de alguém com pele escura.

Em torno de Pelé, a ofensa muitas vezes o levou a ser acusado de se omitir no campo das questões sociais – postura que rendeu a ele um mito que ele não mereceu, o de homem alienado.

Essa imagem, recordou Emicida, foi construída por homens brancos da imprensa esportiva e suprime diversos momentos em que Pelé se posicionou, sim. Como quando disse que nunca tirou a pele para jogar. Ou quando afirmou que se política virou sinônimo de corrupção no país, essa culpa não era do negro. (Mais recentemente, uma foto de Pelé vestindo a camisa das Diretas Já voltou a circular pelas redes sociais).

“Pelé deveria ser mais celebrado como essa figura que parou uma guerra. Ele fez uma geração que veio antes da nossa sonhar com algum reconhecimento”, disse Emicida.

A fala resume o tamanho da perda de Pelé.

Ninguém fez mais pelo Brasil do que ele. Nelson Rodrigues, um dos primeiros cronistas a reconhecer sua majestade ainda no nascedouro, lembra dos tempos em que os brasileiros tremiam, em campo e fora dele, diante da presença dos europeus, então o centro do mundo. Andávamos com a cabeça baixa, com o olhar desviante dos vira-latas.

Pelé destronou a todos, um a um, e deu a um país inteiro a possibilidade de andar com o peito estufado.

Haverá um dia em que não haverá testemunhas de seus feitos para ligar os pontos dessa história.

Esses herdeiros agora somos nós, que já ouvimos de nossos filhos se o Rei do Futebol era mesmo tudo isso.

É uma responsabilidade e tanto para quem recebeu a missão da continuidade pela tradição oral, aqui e ali ajudada pelos registros de um naco do que Pelé produziu em campo quando não estávamos por aqui.

Parte dessa missão diz respeito ao respeito à memória de um herói tantas vezes simplificado, preso a um não merecido rótulo de alienação.

Os antigos nos fizeram entender que com Pelé entre nós nenhuma derrota sairia barata – já que vencer todas não poderíamos, embora ele tenha nos acostumado tanto a vencer.

Alguém voou tão longe antes dele em algum outro campo que não o futebol? Penso em Machado de Assis, o Pelé entre nossos autores, que se dedicou a descrever os vira-latas habitantes de um país num tempo em que éramos ainda menores e ninguém olhava para cá.

Depois de Pelé, todos nós, Machado inclusive, pode ser visto, admirado, reconhecido.

Porque Pelé fez algo mais do que compreender o modo acanhado dos brasileiros estar no mundo. Ele o derrotou.

Sua morte nesta quinta-feira (29/12), aos 82 anos, é a maior derrota que jamais estivemos preparados para absorver.

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