Cem anos do mestre

Por Valdir Barbosa

Ainda não era setenta. Falo de mil novecentos e setenta. Quis o destino, pelos corredores jesuítas, vieirenses pudesse seguir ao encontro de um grande homem, assim como meu pai. Sim, desde então entendi que a grandeza do caráter, o brilho da inteligência são características singulares, capazes de fazer figuras com pouco mais de metro e meio, gigantes em tudo.

No Colégio Antônio Vieira, onde pude encontrar as bases responsáveis por ser letrado, me tornei amigo de alma siamesa, sua filha, Ângela Chaves, amizade que conservo até hoje e para todo sempre, mesmo porque, o cosmos reserva passado presente e futuro, àqueles que nunca deixaram e deixarão de caminhar lado a lado.

Digo do Mestre Raul Chaves. Acordava ele, quando o relógio badalava próximo às dez da manhã. Seu café, sempre servido no quarto da casa linda postada ao limiar da Avenida Centenário, era sagrado. Lembro-me, certa feita, levado pelo professor a congresso na capital pernambucana, dentre figuras hoje representativas do cenário técnico jurídico da Bahia, a exemplo do ínclito Professor Fernando Santana, de meu caríssimo amigo, Conselheiro Pedro Lino, além de Ângela e outra figura inolvidável, Lucy, funcionário do hotel recusou entregar o repasto matinal, nos aposentos onde ele se achava, não prestavam dito serviço. Pude ouvi-lo dizer, “há mais de trinta anos meu desjejum é servido na cama onde durmo” e, diante das suas assertivas veementes, nada restou, senão quebrar o protocolo da hospedaria.

Assertivas veementes eram a tônica daquele mago das palavras, da retórica, do argumento recheado de razões embasadas na doutrina, na jurisprudência, responsáveis por fazê-lo, quiçá, o melhor advogado criminalista de seu tempo, terra “brasilis” afora.

Em terno branco de linho, impecavelmente engomado chegava à Faculdade de Direito da Ufba., de onde foi Diretor e Coordenador, perto do meio dia, na qual ministrava aulas magníficas, à plêiade de discentes apaixonados por seu discurso, sempre impar. Por obvio, desde quando quem muito oferta, por demais cobra, o rigor imposto por ele, frente aos resultados nas provas de avaliação fazia tremer, todos quantos foram alunos seus.

Deus me permitiu o privilégio de conviver por longo período, quando ainda findava formar meu caráter, no seu reduto, templo de D. Myrthes – santa esposa -, Ângela, Reine, Raul Filho, Lana, assim como atendentes, tais quais Baba e Maria, verdadeiros anjos da guarda naquele lar, desde fins do ensino médio e durante os anos todos de vida universitária.

Frente ao televisor do saudoso santuário, de mil memórias inesquecíveis assisti meu nome ser indicado como um dos aprovados da turma que ingressou na Faculdade de Direito, no ano de 1970, tempo que não volta. Também ali pude ver os gols que fizeram a seleção brasileira sagrar-se campeã mundial, no México e outras coisas tantas que calaram indelevelmente em minh’alma.

Naquele canto especialíssimo ouvi cantarem Vinicius, Toquinho e Marília Medalha, numa noite onde o poeta entoou para Lana, a caçula da família, musica inédita que versava: “era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”, quem sabe, energia duradoura capaz de me fazer arriscar rabiscar sonetos, nos tempos atuais.

Depois de ministrar as aulas partia o advogado incansável ao fórum, no afã de cumprir suas demandas. Na hipótese de não ter que varar madrugadas, entre réplicas e tréplicas, nos júris homéricos dos quais foi protagonista, finais de tarde, atendia no escritório famoso, posto em travessa da Rua da Ajuda, centro histórico de Salvador.

Testemunhei, junto aos demais, esposa, filhos, amigos, parentes e funcionários, muitas vezes, sua volta ao lar quando a noite já avançava e o vimos por jornais do país inteiro, sob a mesa da sala de jantar lendo-os de forma peripatética recortando aquilo o quanto interessava, para depois compilar artigos e notícias, em pastas que levava à biblioteca, onde varava madrugadas preparando aulas, corrigindo provas, arrazoando textos manuscritos que seriam depois datilografados por Fátima, fiel escudeira, na velha maquina de escrever de antanho.

Numa destas noites estou naquela casa sublime, vestido numa camisa de botões, aberta abaixo do peito, quando chega o doutor e me pergunta, diante de todos os presentes. “O Sr. acha que está aonde, para se postar desta forma”. Engulo seco, bato em retirada, um tanto envergonhado deixando para trás os colegas, também meio sem jeito.

Dia seguinte retorno, desta feita, “chemisier” fechado até o pescoço. Não sou admoestado pelo decano que deixa a sala e chama filha para aposento reservado, minha distinta amiga já colega acadêmica. Em seguida Ângela retorna totalmente lívida e aduz: “Meu pai perguntou se você está querendo desafiá-lo”. Respondi, incontinenti, em tom alto, “por óbvio não” pondo em seguida os botões no canto devido.

Minutos depois surge o homem, na porta do escritório, ponto ladeado pela escada que acessava a sala principal, a partir dos dormitórios postados na parte superior do imóvel dirigindo o olhar para mim, ato contínuo segue na direção do local aonde me achava e o sinto agigantar como nunca à minha frente. Fita-me nos olhos, sorri aquele sorriso pequeno, delicado, mas grandioso, próprio de si mesmo, então me abraça. Todos os presentes se põem assim atônitos e estupefatos, não fui exceção.

Agora, quando esta figura – Dr. Raul Afonso Nogueira Chaves – completaria o centenário, neste plano temporal no qual estamos, conto ditas histórias, para dizer da sua importância e do seu significado, diante de todos aqueles, nascidos ou não nesta Soterópolis, que tiveram a regalia de tê-lo perto bebendo na fonte de sua sabedoria, crescendo na esteira dos seus exemplos, numa época em que valores éticos e morais estão desgastados sobremaneira.

Saudades Mestre.

Abraços,

Do irreverente e eterno aprendiz,

Salvador, março de 2018

Valdir Barbosam;

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