Brasil, um país sem visão, por isso sem futuro

Por Nilo Silveira

“A visão [aérea, do rastro de destruição] é algo que nos marca. Muitas áreas onde foram construídas
residências, faltou obviamente alguma visão de futuro por parte de quem construiu. Bem como por
necessidade também, as pessoas fazem nessas áreas de risco”, Jair Messias Bolsonaro, visitando Franco
da Rocha/SP, no dia 01/02/20221
; após fortes chuvas terem provocado vários pontos de deslizamentos,
alagamentos, desabrigados e várias vítimas.
Eu leio essa parte da fala presidencial: “… faltou obviamente alguma visão de futuro por parte de quem
construiu.” e não existe no mundo algum “Mesmo que”, “Sabendo que”, “Embora”, ou qualquer outro
advérbio que seja capaz de amenizar tamanha agressão.
A ignóbil figura do atual ocupante da Presidência do Brasil, não é, na minha opinião, a pior parte da
notícia. Para mim, o mais triste é saber que ele é uma figura representativa de uma parte da população:
a elite econômica e a classe média.
Para essa classe, essa “falta de visão de futuro” é que leva nossa população a empilhar casebres em
cima de casebres, se equilibrando em encostas totalmente desnudas por uma ocupação selvagem. Ou
barracos de madeira que se equilibram entre palafitas e pinguelas, sobre esgoto a céu aberto.
Realmente, é muita “falta de visão”… Por que ninguém foi construir seu casebre se apoiando em um
sólido muro de alguma mansão do Morumbi, ou sob a sombra de um prédio de luxuosos apartamentos
em Copacabana?
Eu também acho uma tremenda “falta de visão de futuro”, ver tantos empreendedores de semáforos
por todo país, que não se dedicaram aos estudos, providos pelas escolas de excelente qualidade do país,
com um ensino inovador, professores valorizados e bem remunerados! Ou mesmo tantos engenheiros
sendo motoristas ou entregadores de aplicativos rodando por aí. Perderam tanto tempo estudando
enquanto poderiam estar empreendendo. E todos os demais que se encontram desempregados ou
mesmo os que já desistiram de procurar por um emprego… quanta “falta de visão”.
Visionários mesmo são nossa elite, e a classe média que vem a reboque. Essa última, se pendurando
onde for possível, se banqueteando com as migalhas, como as rêmoras de um tubarão. Conseguiram
prorrogar a valorização máxima de uma força de trabalho gratuita, por mais de 380 anos: a Escravidão.
Inovadores na visão urbanística ao adotarem a arquitetura hostil (pequenas intervenções em ambientes
públicos que barram a existência de pessoas em situação de rua2,3
), mantendo longe da vista a
desagradável figura de pessoas fétidas, sujas e que, por “falta de visão”, vagam pelas cidades. Ou
mesmo a limpeza com água gelada das ruas nos dias mais frios do ano, para limpar toda a sujeira,
incluindo qualquer desocupado com “falta de visão” que estiver se contorcendo entre papelões e saco
de estopa, para se aquecer um pouco.
Que falta não faz uma “visão clara e nítida de futuro”! Queriam tanto o fim da Escravidão, mas graças a
uma “visão aguçada de futuro”, nossas elites travestiram a Escravidão por Direito em novas roupagens,
novos rótulos. Hoje temos a maior parte da população economicamente ativa endividada
financeiramente, acorrentada a juros sobre juros, laçadas com cláusulas escorchantes e taxas abusivas.
São devidamente disciplinados recebendo somente o necessário, e nada mais do que o necessário, para
1-https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/02/01/bolsonaro-sobrevoo-areas-afetadas-pelaschuvas-sao-paulo.htm
2-https://vejasp.abril.com.br/cidades/arquiteta-critica-pedras-agencia-banco/
3-https://oglobo.globo.com/rio/arquitetura-hostil-no-rio-construcoes-para-excluir-populacao-em-situacao-de-ruasao-criticadas-por-profissionais-1-24897503
conseguirem se levantar e irem trabalhar no dia seguinte. Sem nenhum mimo que os faça esmorecer,
como aposentadorias ou direitos supérfluos, tais como férias, estabilidade ou licença maternidade. E
para quem se atrever a levantar sequer uma sobrancelha em ato de rebeldia, será sumariamente
açoitado com inflação e impostos!
É tanta “falta de visão” de um lado, e uma “visão profunda de oportunidades” de outro, que quando
elas se encontram, é uma verdadeira lição: Um rapaz livre de qualquer “visão de futuro” foi cobrar pelo
soldo não pago de duas diárias trabalhadas, somando estrondosos R$ 200,004
. Talvez por ser um
imigrante e não totalmente adaptado a nossa selva nacional, o jovem não percebeu o tamanho da
ofensa que desferiu. Já o empreendedor da Barra da Tijuca, junto com seus pares, não só mostrou para
o seu “empregado” qual é a sua exata posição dentro do extrato social, como mostrou para esse jovem
o que é um verdadeiro empreendedor: voltou para a sua jornada, como uma pessoa de “visão de
futuro”. Já aquele corpo praticamente “cego de visão”, se afogava em seu próprio sangue.

Mas como esse choque de falta de visão com excesso de visão às vezes pode provocar algumas reações
imprevistas, a visionária elite nacional já preparou seu teatro, com o coadjuvante que será vencido e
com o bufão que deverá vencer no final da peça. Se o público ficar entretido, teremos mais uma
temporada com as rédeas do poder nas mesmas mãos (cheias de anéis), enquanto a população seguirá
anestesiada e sem “visão de futuro”.
4-https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/01/familia-denuncia-que-congoles-foi-espancado-ate-a-morteno-rio-apos-cobrar-salario-atrasado.shtml
5-https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/01/31/moise-kabamgabe-o-que-se-sabe-sobre-a-morte-docongoles-no-rio.ghtml

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