“Família é o grupo originário onde os indivíduos recebem alguma forma de amor”
Sábado (8/05), a partir das 8h, no Colégio Berlaar Imaculada Conceição, em Montes Claros, o sociólogo Levon do Nascimento, de Taiobeiras-MG, foi o palestrante do período da tarde do 1º Módulo da Quarta Turma da Escola de Formação em Fé e Política da Arquidiocese de Montes Claros, cujo tema foi “análise da conjuntura social, econômica, eclesial e política com instrumentos de como fazer uma análise de conjuntura”. Confira abaixo, a entrevista concedida ao jornalista João Renato Diniz.
1) Primeiramente, qual é a sua formação e um pouco da sua história de vida familiar e profissional? Fiz Ciências Sociais na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e recentemente conclui o mestrado em Estado, Governo e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e da Fundação Perseu Abramo. Sou casado há 16 anos com Flaviana e temos uma filha e dois filhos. Trabalho desde 2001 na Escola Estadual Presidente Tancredo Neves, em Taiobeiras, onde leciono História para os anos finais (6º ao 9º) do Ensino Fundamental.
2) Comente sobre as suas publicações? Sou uma pessoa um tanto tímida e reservada. Comecei a escrever para dar vazão àquilo que eu pensava e, de certo modo, não conseguia expressar verbalmente. Mas também para atender à minha vocação cristã de ser “luz no mundo” e “sal da terra” (Mt 5, 13-14), ou seja, de interferir na sociedade a partir dos valores evangélicos. Desse modo, passei a compor artigos de opinião, crônicas e outros textos, inicialmente publicando-os no jornal “Folha Regional”, de Taiobeiras; e, em seguida, num blog que eu mantinha na internet. Os livros acabaram sendo a reunião de muitos desses escritos, que falam de fé, política, sociedade, ética, cultura regional, etc. Recentemente, lancei dois livros, “Crer e Lutar” (O Lutador, 2017) e “Vidas Interrompidas” (Autografia, 2018). “Crer e Lutar” é um conjunto de textos reflexivos sobre esse contexto sombrio do neofascismo que estamos vivendo, buscando iluminar a luta de quem se opõe a essa conjuntura, a partir da referência da Palavra de Deus. Já “Vidas Interrompidas” é a adaptação de minha dissertação de mestrado para o formato de livro, abordando, e buscando compreender analiticamente o fenômeno do genocídio de jovens pobres, pardos e negros pelo tráfico de drogas em Taiobeiras entre os anos de 2013 e 2017. Não me considero um escritor propriamente, apenas alguém que usa o recurso da escrita para se colocar e contribuir com o debate de nossos temas cotidianos.
3) O que você irá tratar neste primeiro módulo da Escola de Fé e Política que abre a quarta turma na Arquidiocese de Montes Claros? Sônia Gomes me convidou para mediar o tema “Como fazer análise de conjuntura”. Pretendo me basear num escrito antigo do Herbert de Souza, o Betinho, que, embora publicado na década de 1980, em minha opinião, permanece válido em quase tudo para o contexto social regressivo que estamos vivendo no Brasil (e no mundo).
4) É possível fazer uma análise de conjuntura que agrade todas as pessoas? Acredito que não. Os seres humanos são iguais em dignidade, mas são distintos em classes sociais, níveis de educação formal, gênero, identificação racial, orientação sexual, origem geográfica e cultural, etc. Desse modo, têm interesses distintos, muitas vezes contrários entre si. Acho que o que mais pesa é a classe social. Os interesses mudam conforme a classe e moldam a percepção de mundo e de sociedade das pessoas. Por exemplo, num contexto histórico de mais de 300 anos de escravidão, como o caso brasileiro, e em que, mesmo abolida há quase 131 anos, ainda não se superaram as relações de superioridade e subjugação, que permanecem implícitas, mas resilientes, uma análise séria fatalmente colocará o dedo na ferida e isso incomodará a quem se beneficia da superexploração do trabalho alheio. No aspecto cristão, uma análise de conjuntura que leve em conta a “evangélica opção preferencial pelos pobres” desagradará àqueles que têm na fé apenas um instrumento de conformação social (autoajuda) ou de anteparo para a busca do sucesso individual (teologia da prosperidade); ou não lhes fará sentido. Os primeiros questionarão qual a relação que há entre “salvar almas e falar de política mundana”; os segundos recorrerão a teorias conspiratórias, como o “marxismo cultural”, para acusar uma suposta invasão da Igreja por “interesses comunistas”, intuo.
5) A realidade social de onde a pessoa vem ainda influi no processo de aprendizado da mesma? Evidentemente que sim. Acho até que a resposta da pergunta anterior já entra nesse assunto. O saudoso jesuíta e filósofo João Batista Libânio, no livro “Ideologia e Cidadania” (Editora Moderna, 1995), apresenta a analogia de duas pessoas que olham para a mesma realidade, porém uma se posta no topo de uma montanha e outra no vale ao pé daquela elevação. Ambas enxergam o mesmo ambiente, mas de pontos de vista inteiramente distintos. Daí que cada uma terá narrativa e aprendizado bem diferentes. Parece-me acertado dizer que quem vem da zona rural, da agricultura familiar, das famílias negras da periferia, aprende, para o bem ou para o mal, a partir do que vivencia ali, e tende a reproduzir esse aprendizado por toda a vida. Já quem está na classe média, nos bairros e condomínios com acesso a serviços e equipamentos de cidadania, conhece a realidade de outra forma, e também a reproduz em consonância com sua origem de vida. Porém, os modernos meios de comunicação, como as redes sociais, cada vez mais acessíveis e universalizados, podem distorcer a realidade e redefinir uma outra maneira de aprender e apreender informações, tanto servindo à mobilização e transformação, quanto à manipulação e difusão de conteúdos desagregadores, até mesmo contrários aos interesses daqueles que os recebem e compartilham. Em menor escala, a educação formal pode ocasionar contribuições ao conhecimento para além do grupo social e procedência geográfica dos indivíduos.
6) Esquerda, Centro e Direita. Defina, na sua opinião, essas visões de mundo. O mundo ainda pode ser dividido por essas três visões de mundo? É interessante notar que, até as Jornadas de Junho de 2013, esses termos estavam praticamente em desuso, a não ser em grupos muito restritos de esquerda. Parecia que a história tinha se acabado, como disse Bush pai durante a queda do Muro de Berlim. E isso provocou um enorme vazio de significados em quem não estava inserido no jogo democrático. O que se viu ali é que os identificados com os valores considerados de direita perderam o medo de assim se apresentarem e ocuparam o espaço vago. Se isso foi calculado em alguma repartição nacional ou internacional, eu ainda não me arrisco a especular, mas é fato que aconteceu e é um desdobramento da crise mundial de representação política e da desilusão com a democracia liberal. Norberto Bobbio, no clássico “Direita e Esquerda” (Editora Unesp, 2011) afirma que os valores da direita são aqueles relacionados à visão de que o ser humano é por essência individualista e que sua vocação é a concorrência para alcançar o ponto mais destacado da sociedade (riqueza, poder, subjugação), enquanto que a esquerda se identifica com a noção solidária de humanidade gregária e coletivista (comunidade, fraternidade, igualdade). Muitos, com a cabeça ainda na Guerra Fria e nos anos 1960, dirão que a direita é o capitalismo e que a esquerda é o socialismo. Não estarão de todo erradas, porque é óbvio que há essa identificação. Porém, no contexto ultraliberal capitalista em que vivemos, quando o socialismo real é apenas uma pálida lembrança de saudosistas, me parece que ser de direita significa se render a um estágio selvagem de nossa natureza, aquele do “salve-se quem puder” ou do “que vença o melhor” (a lei da selva), enquanto que estar à esquerda significa irromper-se contra essa lógica do Coliseu, afirmando-se humano, humanizando-se por meio do convívio colaborativo com outros de sua própria espécie, espelhando-se num iluminismo à moda de Rousseau. Quem se detém sobre os quatro evangelhos sinóticos e que deseja viver de fato o que ali se propõe, invariavelmente acabará por se descobrir de esquerda, ainda que não socialista ou comunista. A experiência histórica de Jesus, que não é a de um líder bolchevique, tampouco de um peregrino puritano da América do Norte, fustigou todo e qualquer individualismo nas relações sociais (“Vá, vende tudo e dá aos pobres” Mt 19, 20 ou “Todos os que acreditavam tinham tudo em comum” At 2, 44). Quanto ao centro, enxergo nele o muro e o oportunismo, mas reconheço que, no atual período de polarização, faz-se necessário abrir pontes e este espectro do campo político pode ter essa utilidade.
7) Quando comecei a fazer o curso de jornalismo, eu tinha mais uma visão mais à Direita do mundo. No final do curso, estava mais à Esquerda do processo. O meu início de trabalho na Arquidiocese de Montes Claros, em 2003, sobretudo com as pastorais sociais, intensificou minha visão de mundo mais à Esquerda. Pergunto: Como é possível uma Igreja que semanalmente durante as missas aos domingos prega uma liturgia mais engessada e durante a semana uma liturgia mais libertadora? É possível que um dia a liturgia da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base seja instrumentalizada em uma missa? Temos um papa que é um verdadeiro presente de Deus ao nosso tempo, uma prova viva e de fé de que o Senhor atua na história humana. Em contraposição, uma Igreja que age como um transatlântico pesado, difícil de manobrar e em franca má vontade de seguir aos comandos dados pelo leme do capitão (Francisco). Penso que o problema não é a liturgia, que é rica de conteúdos e significados, mas a robotização do clero e dos leigos. Dói-me ver o excesso de vênias durante a liturgia da palavra, como se ainda estivéssemos numa corte medieval, ou as homilias desconexas e cansativas, desligadas da riqueza da palavra e do contexto em que as pessoas vivem, ou então emporcalhadas por autoajuda e teologia da prosperidade. Acredito que o próximo censo (2020) revelará que isso não agrada ao povo: infelizmente, o número de católicos cairá. Penso que é preciso humildade do clero brasileiro e de muitos leigos. Não adianta copiar os pastores evangélicos. Temos muita riqueza na Igreja a ser redescoberta. É necessário recuperar as boas tradições e alcançar solidariamente as pessoas em seus ambientes diversos. Menos preconceito com as diferenças, menos autoajuda alienante e menos preocupação financeira ajudariam. Mais vivência prática do amor evangélico nas comunidades, mais conhecimento real da vida das ovelhas pelos pastores, e presença nessas vidas, é o que nos falta.
8) Sempre quando a Esquerda está prestes a chegar ao poder no mundo, começam as especulações de que o espectro do comunismo ronda os continentes. Vivemos isso em 1º de abril de 1964, com o golpe militar, e tornamos a viver resquícios dessa época com as eleições de Luís Inácio Lula da Silva em 2002 e 2006, de Dilma Rousseff em 2010 e 2014 e o seu “impeachment” em 17 de abril de 2016, mesmo enfatizando, nesses dois últimos casos, que a Esquerda fez alianças com a Direita que a prejudicou. A Esquerda aprende com os seus erros? O espectro do comunismo ronda o Brasil, parafraseando o próprio Karl Marx. Mas não o comunismo conforme é proposto pela doutrina marxista e sim a ilusão criada pelo medo do outro, pela repulsa às diferenças e pelo ódio aos pobres. A essa ilusão, presente nos grunhidos mais recônditos da alma humana, alimentada propositalmente pelos interesses da grande burguesia do capital e pela “elite do atraso” brasileira (expressão consagradora do cientista social Jessé Souza), dá-se o nome de comunismo, sobretudo em épocas de retrocesso e obscuridade, como agora. Os interesses de quem estimula isso são conhecidos e dispensam maiores caracterizações. É preciso dominar as massas para crescer o lucro e a concentração de riquezas. Porém, que essa ignorância ganhe corpo nas classes populares, deve-se justamente à pouca capacidade das esquerdas, e falo no plural, aí incluída a Igreja genuinamente comprometida com o Evangelho de Cristo, de estarem presentes na vida dos pobres e deserdados pelo capitalismo. As narrativas da teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais e da seção pneumática do catolicismo estão muito mais presentes nas favelas e demais periferias do que o pensamento emancipador da esquerda. Falhamos todos: partidos políticos populares, movimentos sociais, comunidades eclesiais de base, intelectuais comprometidos com a transformação social, universidades, etc. Falhamos com a democracia. Não soubemos transformar as conquistas institucionais de 1988 em narrativas inteligíveis ao povo, capazes de serem defendidas, compartilhadas e amadas. Quanto às alianças à direita pelos partidos políticos que chegaram ao poder federal, eram previsíveis, pois a esquerda elegeu a Presidência da República, mas não emplacou mais do que 150 parlamentares de esquerda no Congresso Nacional ao logo de todo o período. Como disse Jesus, seria impossível que o vinho novo não vazasse dos odres velhos de Brasília. Em outras palavras, sem mobilização para ocupar a maioria dos espaços de poder no Estado, por pessoas comprometidas com os ideais de esquerda, ou seja, no Legislativo, Executivo, Judiciário, Forças Armadas e demais níveis de governo, serão necessárias ainda alianças quando qualquer líder esquerdista conquistar a Presidência. Não se trata de aprender com os erros apenas lá no topo, mas é justamente na mobilização de base que se necessita urgentemente de autocrítica. Eu tenho esperanças no aprendizado.
9) Costumamos dizer que o pai é o capitalista e a mãe a comunista. Diante da complexidade humana da pós-modernidade, essa divisão ainda existe na família atual? Como você vê as formações familiares na atualidade? Mesmo tendo sido criado por meus padrinhos e não por meus pais biológicos, eu tinha uma concepção muito tradicional de família. Era comum eu pessoalmente me escandalizar, ainda que não manifestasse, com a realidade de meus alunos há 18 anos, quando comecei a lecionar. Eram filhos sem pai; muitos irmãos por parte de uma mãe, mas com vários pais diferentes; netos criados pelas avós, etc. Acho que hoje aprendi que família é o grupo originário onde os indivíduos recebem alguma forma de amor e de conhecimentos básicos para o início da jornada da vida, sem se importar muito com a definição rigorosa de papéis exercidos pelos membros daquela pequena coletividade. Em outras palavras, onde há amor que transcende os interesses pessoais em favor do bem-estar de outros indivíduos poderia dizer que aí se constituiu uma família. Recordo-me das palavras de Jesus quando lhe disseram que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora a procurá-lo. “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?”, perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 48-50). Acredito que a Igreja precisa, a exemplo de Jesus, acolher todo tipo de família.
10) Foi no dia 05 de setembro de 2009 que a Escola de Formação em Fé e Política começou na Arquidiocese de Montes Claros. A primeira turma contou com 100 participantes. Ao final, 80 destes concluíram o curso. Participaram oito vereadores, dois padres, professores, advogados, bioquímicos, farmacêuticos, jornalistas, trabalhadores rurais, estudantes de diversos cursos e psicólogos. Pelo seu olhar de sociólogo, a Escola de Formação em Fé e Política na Arquidiocese, em 10 anos de existência, contribui para transformar a realidade social, política e econômica regional? Como? Não tenho dados para mensurar objetivamente. Mas confio na força transformadora do Evangelho e na formação política como instrumentos fundamentais para a mudança das consciências, das atitudes e da história. É com essa esperança que entendo esta iniciativa como algo extremamente positivo para este nosso sertão norte-mineiro, tão carente da “vida em abundância” (Jo 10, 10) que Jesus desejou para toda a humanidade. Eu confio.
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***Viviane Carvalho – Assessoria de Imprensa Arquidiocese de Montes Claros
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