O cinismo dos arautos da “modernização” trabalhista

Qualquer cidadão com mediana capacidade de raciocínio lógico é capaz de deduzir que a reforma trabalhista e a terceirização erodirão as receitas da Previdência Social. Nos últimos anos, essa faculdade de discernimento foi, porém, mantida embaixo do tapete pelos defensores do “mercado”, aplicados na promoção do massacre ideológico em favor da reforma. A grande imprensa, protagonista no debate, também se calou.

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Agora, com o fato consumado pela aprovação das reformas que retrocedem os direitos laborais ao patamar da década de 1930, alguns iluminados saíram do sono profundo para alertar que elas “põem em xeque o futuro da arrecadação previdenciária”.
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“Não fica claro qual benefício previdenciário será gerado para o trabalhador intermitente, ou seja, como ele vai aposentar-se”, diz um dos letárgicos. A resposta é óbvia: ele não vai aposentar-se, pois esse trabalhador ganha por hora, dias e meses sem continuidade e o rendimento tributável pode ser menor que um salário mínimo (937 reais).

Nesse caso, ele terá de fazer uma contribuição adicional ao INSS para garantir a condição de segurado. Se esse complemento não for pago, ele não terá direito a benefícios da Previdência, o que também dificulta a comprovação do tempo de contribuição e reduz a receita da Previdência.
“Por outro lado, ainda não se sabe se a reforma vai gerar formalização da mão de obra, o que compensaria esse efeito”, sustenta outro experto. Além do desconhecimento da experiência de outros países, salta à vista que ela vai “formalizar” o trabalho precário e informal, de menor salário e contribuição previdenciária.
Essa incapacidade de discernir desconsidera a evidente tendência de haver forte transição dos empregos formais com carteira assinada para contratos flexíveis, precários e de curta duração, com menor período contributivo e valores rebaixados, o que também diminuirá as receitas previdenciárias.
“Pelo texto aprovado, posso contratar minha empregada doméstica como microempresária”, sustenta o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury. Para ele, “haverá demissão grande de trabalhadores e contratação por formas alternativas”.
A prevalência do negociado sobre o legislado, a individualização dos contratos de trabalho, a terceirização irrestrita, o trabalho intermitente, o desestímulo e a limitação do acesso à Justiça do Trabalho, o desmonte da ação sindical proporcionam ambiente para a generalização das condições de trabalho degradadas que reduzem a massa salarial sobre a qual incidem as receitas previdenciárias.
“Os empregadores terão à sua disposição um grande cardápio para gerir a força de trabalho de acordo com a forma como precisarem, do ponto de vista da contratação, da jornada e da remuneração”, alerta José Dari Krein, um dos coordenadores do “Dossiê Reforma Trabalhista”, organizado pelo Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit), da Unicamp.
O cardápio inclui o trabalho intermitente, a jornada parcial, a contratação na modalidade de pessoa jurídica e de autônomos com “exclusividade e continuidade”, sem configurar relação de emprego, o que incentivará a migração para o Microempreendedor Individual (Simples Nacional) que paga cerca de um terço dos tributos em comparação aos registrados.
A regularização do prêmio-produtividade “em forma de bens, serviços ou valor em dinheiro” ao empregado que tiver “desempenho superior ao esperado” também sangrará os cofres da Previdência, pois sobre ele não recaem a contribuição previdenciária, de 8% a 11% sobre a remuneração.
O mesmo ocorrerá nos casos do Auxílio-alimentação, diárias para viagem, assistência médica e odontológica, prêmio e abonos, que também deixam de ser considerados como salário, cortando a parcela tributável dos ganhos mensais. Todos esses mecanismos têm impactos severos na arrecadação.
Em fevereiro de 2017, quando os contornos das reformas laborais estavam sendo definidos, os 50 especialistas que escreveram o documento “Previdência: reformar para excluir?” denunciaram que a Reforma da Previdência causaria estrago grave nas contas do setor.
Em síntese, o documento sublinha que, com as restrições impostas pela PEC 287 (elevação da idade de aposentadoria para amplos segmentos dos segurados, o aumento da carência contributiva para 25 anos e a redução do valor dos benefícios em relação às contribuições) “é plausível esperar que se altere o comportamento da população em relação à filiação e contribuição para o sistema previdenciário” (p. 99).
Em meados de 2017, ante a iminência de serem aprovadas a Reforma Trabalhista e a Terceirização, artigo publicado em Carta Capital alertava para uma “combinação explosiva”: a PEC 287, a terceirização irrestrita e a reforma trabalhista “poderão quebrar o Regime Geral da Previdência Social (RGPS)”.
Pesquisadores da Unicamp que participaram da elaboração do “Dossiê Reforma Trabalhista” traçaram cenários para avaliar o impacto da reforma trabalhista na arrecadação da Previdência Social.
É importante ressaltar que, em função da deficiência da base de dados disponíveis, os exercícios de simulação apresentados avaliam apenas alguns dos efeitos parciais da reforma trabalhista na arrecadação previdenciária: somente a “pejotização” e a “formalização” dos trabalhadores por “conta própria” e dos “sem carteira”, que não contribuíam para a Previdência.
O estudo não considera, por exemplo, os impactos ainda mais expressivos da terceirização e da flexibilização de contratos de trabalho, “que podem provocar a redução do número de horas trabalhadas, da massa salarial e o aumento das formas de remuneração que não contribuem para a Previdência Social”.
Essa estimativa parcial apresenta três cenários. No pessimista, a Previdência deixaria de arrecadar em torno de 30 bilhões de reais ao ano. No intermediário, a perda de arrecadação seria de 13,5 bilhões ao ano. E, no otimista, a queda seria da ordem de 4 bilhões ao ano. Os autores concluem: “Nesse contexto, os exercícios de simulação apresentados destacam que a reforma trabalhista impõe um enorme desafio para o financiamento da Previdência Social”.
As reformas laborais liberalizantes impõem-se para ampliar o lucro e a produtividade, pelo rebaixamento dos custos trabalhistas, pela eliminação do tempo ocioso das jornadas (horários de almoço, por exemplo) e pela extinção das remunerações do “não trabalho” (férias, descanso semanal remunerado e décimo terceiro salário, por exemplo).
É truísmo afirmar que essas mudanças derrubam as receitas previdenciárias. Os sábios do “mercado” não sabiam dessa verdade evidente por si mesma? Claro que sabiam, há muitas décadas. Do ponto de vista das finanças públicas, Trabalho e Previdência são reformas gêmeas: a primeira derruba as receitas e torna imperativa a redução dos gastos pela interdição do direito à proteção na velhice.
Sem o êxito na reforma fiscalista da Previdência (até agora o governo perdeu da sociedade por 7X0 e esforça-se para perder de 7X1), e consumada a reforma laboral, em breve a previdência estará quebrada. E isso servirá de pretexto para novas rodadas de cinismo e desonestidade em prol da “modernização”, com o argumento de que “não há alternativas”.
Fonte:https://www.cartacapital.com.br/economia/o-cinismo-dos-arautos-da-modernizacao-trabalhista

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