Condeúba: As guerreiras negras da divisa da Bahia com Minas
HOMENAGEM A SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
* Por Levon Nascimento
Feliciana era uma mulher negra que viveu no Areial, região próxima do Morro da Feirinha, na zona rural de Condeúba, Bahia, divisa com o norte de Minas Gerais.
Ela fazia peneiras de taquaras retiradas de coqueiros e outras palmeiras, junto com as filhas Joaquina, Rita, Euflosina e Francisca. Era a única riqueza de seu trabalho que conseguiam comercializar. Artesãs de mão cheia! As taquaras eram amarradas com cordão de algodão lubrificado com cera de abelha. Começo, meio e fim do processo produtivo todo dominado por elas.
peneira de pindoba taquara Fabricação de peneiras de taquaras
A terra onde Feliciana morava ficava sob um pedregulho aos pés do morro. Era assim desde seus pais e avós. Herança dos tempos do cativeiro. Quem sabe, um resquício de quilombo? Talvez, um dos poucos pedaços de chão que sobrou para ela e outros negros da região. Os terrenos bons eram propriedades de brancos.
Mesmo com o rio banhando os fundos da casa, a infertilidade do solo exaustivamente usado por anos não deixava que nenhuma cultura rendesse. No máximo uns pés de mandioca, umas covas de milho e mangueiras que matavam a fome da meninada. E os pés de algodão, para fazer os cordões das peneiras.
Feliciana foi casada com José Martins do Nascimento. Conta-se como lenda que ele foi mais de quarenta vezes a pé a São Paulo para trabalhar. Ganhava muito pouco. Quando chegava, era o suficiente para pagar as dívidas de sobrevivência da família. Já nas últimas expedições à capital paulista, levava consigo alguns dos filhos homens. Retirantes… Viúvas de marido vivo.
Feliciana era rígida. Criou filhos e filhas numa pobreza material imposta pela realidade, mas criativamente rica de significados místicos, morais e éticos desenvolvidos pela capacidade de seu povo em ressignificar as agruras da vida e torná-las palatáveis e belas.
Quando morria um anjo[1] de família negra ou branca, na ausência e na distância das instituições religiosas, era Feliciana e suas filhas que faziam o ritual de colocar o pequeno esquife[2], quando havia caixão, sobre rodias[3] na cabeça, cantando e dançando em círculos durante a sentinela[4], encomendando a pobre e desvalida alminha a Deus e Nossa Senhora. Cerimônia de sentido determinista, conformados que todos estavam com a sina e a naturalidade da mortalidade infantil, mas que remetia à necessidade de continuar vivendo e celebrando, mesmo em meio à miséria social.
Morro da Feirinha, município de Condeúba/BA, divisa entre a Bahia e o norte de Minas.
Para buscar pindoba, das quais se extraia as taquaras para as peneiras, Feliciana e suas filhas tinham de ir aos boqueirões das terras do Capitão Fabrício, o latifundiário que mandava na região da Feirinha do Morro. Fazenda a perder de vista, matas virgens nas divisas baianas com os sertões geraizeiros. Iam com todo o cuidado, escondidas, porque por diversas vezes foram ameaçadas de espancamento pelos capatazes do senhor de terras, punidas por “invadir” desobedientemente e extrair as riquezas naturais das quais aquele rico homem nem fazia caso. Mas elas insistiam na ousadia. Era preciso viver.
De sexta para sábado, aquelas mulheres negras, vestidas de longas saias pretas e blusas brancas de algodão, por elas mesmas cultivado, tecido, costurado e ornado, punham-se a caminho de Condeúba. Sete léguas[5] de distância, a pé. Sobre as cabeças dezenas de peneiras. Entregavam a preços módicos o fruto sofrido de seu trabalho a comerciantes de Guajeru, que por elas já esperavam. Certamente conseguiam lá na frente dinheiro melhor naqueles produtos.
Uma fila indiana de mulheres negras, corpos esguios, quase sempre famélicas. Enquanto isso passavam os carros de boi das famílias brancas. Cumprimentavam-se, compadres e comadres que eram, mas nenhum se propunha a pelo menos levar a carga de peneiras daquelas criaturas até a feira da cidade-sede do município. Contavam apenas com seus corpos e com a fé nas forças divinas para as quais encaminhavam as pobres alminhas brancas e negras.
No século XIX, na região do atual Benin, na África, os imperialistas brancos se defrontaram com a bravura das guerreiras mino, amazonas negras que desde o nascer recebiam treinamento de suas tribos do Reino de Daomé para dar a vida lutando contra os invasores. Eram as Ahosi. Relatos europeus informam que elas possuíam muito mais vigor, bravura e técnica do que os combatentes do sexo masculino e que só a muito custo se conseguia derrotá-las, quando conseguiam.
Guardadas as devidas proporções, Feliciana e suas filhas, como muitas outras mulheres, foram Ahosis do sertão. Bravas, rigorosas, tecnicamente eficientes, lutadoras numa terra onde tudo lhes ignorava ou era hostil, desafiadoras de uma sociedade que as queria mortas, rebeldes insistindo em viver.
Feliciana morreu em julho de 1976, cinco meses depois do meu nascimento. Ela nasceu e viveu num país que nunca se deu ao trabalho de saber de sua existência. Não tinha documentos, não votava, não era alfabetizada, nunca se aposentou. Retornou ao infinito durante uma feroz ditadura militar que prendia, torturava e matava pessoas que pensavam em construir um Brasil mais digno e justo para os seus descendentes. Feliciana era minha bisavó, mãe de Manoel José do Nascimento, meu avô materno. Uma Ahosi brasileira.
* Levon Nascimento é sociólogo, professor de História e mestrando em “Estado, Governo e Políticas Públicas” pela Fundação Perseu Abramo e Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.
Espetacular o texto, a sensibilidade dos detalhes…