O que o Brasil precisa aprender sobre inclusão de pessoas negras no mercado
Por Karla Garcia
Supervisora de Onboarding Services na Rock Content.
O mercado de trabalho brasileiro apresenta um abismo social quando comparadas as oportunidades entre trabalhadores negros e brancos. A falta de representatividade é, dentre outros fatores, um dos motivos para tornar essa disparidade tão grande. Conheça, a seguir, algumas iniciativas que já acontecem para fazer a inclusão racial corretamente.
O Brasil é conhecido por ser uma país de muita diversidade e por uma falsa democracia racial, que promove discursos sobre uma sociedade livre de preconceitos. A verdade, no entanto, é que caminhamos lentamente em direção ao desenvolvimento de um país que apoia a inclusão e diversidade.
A ONG Britânica World Heal the World realizou um estudo do Mapa do Ódio no nosso país. Esses dados revelam que, em 2018, foram registrados no Brasil mais de 12 mil crimes de ódio, sendo que 70,47% desse número refere-se a crimes motivados por preconceito racial — estamos falando de 8.525 vidas.
O racismo no Brasil é estrutural e institucionalizado, e é preciso conhecer desde às suas bases até o topo, para compreender como isso reflete na nossa sociedade e na construção da identidade de pessoas negras.
Nesse processo, estamos falando das constantes manifestações de injúria racial e nos seus desdobramentos em manifestações mais complexas e com resultados ainda mais drásticos e violentos.
Para entender mais sobre essa realidade, e se inspirar em iniciativas que buscam mudar essa perspectiva, continue conosco!
Os números do mercado de trabalho
Uma dessas manifestações pode ser vista no mercado de trabalho. Há um abismo social quando falamos de educação e oportunidades entre negros e brancos.
Esse resultado é refletido na formação e ascensão profissional de pessoas negras, que são incluídas em grupos de trabalhos aptos para serviços braçais e sem necessidade de qualificação profissional e educacional.
Esse impacto é visto em números, como o de que apenas 4,7% do quadro de executivos do Brasil é composto por pessoas negras, sendo que esse recorte é ainda mais complexo quando trata-se de mulheres negras, representando apenas 0,4% desse número.
É importante, ainda, ressaltar que mais de 80% das empresas afirmam que não possuem medidas para incentivar a inclusão de pessoas negras em seu quadro de colaboradores.
Uma vez que uma minoria é capaz de aceder esses espaços, deparam-se com um ambiente altamente competitivo, que não leva em consideração as diferenças sociais entre um profissional negro e outro branco. Dessa forma, não reforçam medidas que promovam a igualdade de oportunidades internamente.
Todas essas questões são ainda mais graves quando observamos da perspectiva de uma mulher negra, já que mais de 30% delas estão inseridas em situação precária de trabalho.
Esses números são muito contraditórios e espantosos quando analisamos uma pesquisa da McKinsey, que traz o resultado de que empresas com maior diversidade étnica são também empresas que apresentam melhores performance.
dividendos da diversidade, segundo a McKinsey
Fonte: McKinsey
Outro estudo da BCG, demonstra que há uma oportunidade de retorno de 19% em receita quando falamos de empresas que investem em diversidade, especialmente nas camadas de liderança.
Esse resultado é proveniente da conexão entre distintos perfis, com distintas vivências, que entregam resultados surpreendentes em relação a outras empresas.
O racismo no mercado digital
O mercado digital facilitou ainda mais o entendimento deste cenário, ao mesmo tempo que criou um ambiente muito propício para sua propagação. Estamos falando não apenas de comerciais, mas também de redes sociais e até mesmo algoritmos de busca do Google — que precisou rever sua tecnologia em 2015, quando um usuário identificou que o Google Photos estava categorizando seus amigos negros como gorilas.
falha no algoritmo do google, em 2015
Em 2018, a Perdigão lançou um comercial de Natal que reforçava muitos estereótipos racistas da sociedade.
Durante pouco mais de 30 segundos, a empresa conseguiu reforçar questões muito delicadas, quando expôs uma família negra (os Silva) desestruturada, sem uma figura paterna, em um cenário bastante humilde e muito agradecida ao provedor branco, representado pela família branca (os Oliveiras), que havia feito indiretamente a doação de um Chester, para que os Silva pudessem ter uma ceia completa naquele Natal.
Os estereótipos são ainda mais claros quando a família dos Oliveira entra em cena, com uma mesa farta, uma linda decoração de Natal e a família completa.
A importante discussão que esses casos levantam é sobre o reflexo da quantidade de empresas que demonstram falta de consideração em relação às pautas de diversidade e inclusão, tanto internas quanto externas, já que comerciais, por exemplo, são executados por terceiros.
Além disso, tais resultados são herança da falta de equipes diversas, que contam com a presença de profissionais negros, principalmente em cargos de tomada de decisão.
Representatividade além do esporte
Para iniciarmos essa conversa, era imprescindível entender sobre o contexto histórico e atual do racismo no Brasil. Um dos impactos da falta de profissionais negros no mercado de trabalho é a falta de representatividade.
Até aqui, conseguimos compreender sobre o porquê da falta de representatividade no mercado, mas ainda não conversamos sobre as razões para ela ser tão fundamental no processo de formação de identidade de profissionais negros.
Em 2016, explodiu a campanha “Não me vejo, não compro”. Ela começou quando a mãe de uma criança negra fez um post, em sua página no Facebook, contando que o filho quis um boneco por ele ser negro, e ele se sentiu representado ali.
O boneco em questão era Finn, personagem de Star Wars, interpretado pelo ator John Boyega — filme que o garotinho nem mesmo conhecia.
criança pede boneco do star wars por se sentir representada
Em contrapartida, pouco tempo depois foi identificado que a embalagem da fantasia do personagem era ilustrada por um menino branco.
A relação fundamental entre uma criança que consegue se enxergar em um boneco de brinquedo por ele ser negro e a representatividade no mercado de trabalho é muito similar.
Entender essa relação é muito importante para compreender o preconceito e a desigualdade social e racial em que a população negra está inserida.
É necessário ir além dos gramados de futebol, dos palcos musicais ou de casos isolados como a modelo Naomi Campbell ou o Presidente Barack Obama.
Quem representa a população negra nas outras áreas do mercado de trabalho? Quem é referência no mercado digital e tecnológico? Quais pessoas negras estão em cargos de CEOs e Founders e nos inspiram?
Essa ausência de representatividade se estende também para eventos, hackathons e feiras, que normalmente oferecem um ambiente de aprendizado, motivação, inspiração e networking, mas costumam ser organizadas por pessoas brancas que desenvolvem agendas e pautas pensadas para uma maioria branca.
Excluindo, assim, a possibilidade de jovens profissionais negros se inspirarem em outros profissionais negros.
Sem contar na acessibilidade, já que muitos dos eventos do meio digital são economicamente inacessíveis, tornando-se assim um espaço majoritariamente exclusivo para profissionais brancos.
Realidade passível de mudanças: iniciativas que fazem a inclusão racial de forma correta
Muitas empresas começaram a adotar um posicionamento em favor da diversidade e inclusão, porém, mudar uma história marcada por anos de exploração laboral, social e psicológica não é um processo simples.
Primeiro, para que qualquer iniciativa seja bem-sucedida, é preciso iniciar pelo processo de compreensão do contexto histórico de luta das pessoas negras no Brasil e também do atual processo de descoberta, transformação e racismo velado que enfrentam.
É necessário, ainda, que as empresas entendam que não há diversidade sem inclusão e para incluir, é preciso mudar. Construir um ambiente plural em uma empresa vai muito além de discursos e celebrações.
Para incluir, é preciso rever toda uma estrutura que foi desenvolvida por pessoas brancas, para pessoas brancas e entender que processos, como os de recrutamento e seleção, precisam mudar. É preciso compreender desde o início que a jornada de uma pessoa negra não é (e nunca foi) igual a de uma pessoa branca.
Algumas empresas e iniciativas estão atuando proativamente nessa caminhada e contribuindo para que a inclusão e a participação de pessoas negras na sociedade e no mercado de trabalho sejam reais.
A seguir, conheça mais sobre elas e inspire-se!
Enegrecer a Tecnologia — programa da ThoughtWorks
Enegrecer a Tecnologia é uma iniciativa da ThoughtWorks Brasil desenvolvida por pessoas negras da empresa, como resposta ao cotidiano impactado pelo racismo ainda velado no mercado de trabalho. O foco do programa é enegrecer cada vez mais a Tecnologia, a ThoughtWorks Brasil e colocar a Negritude em foco.
O início do programa foi marcado pelo Enegrecer Recrutamento Express, uma campanha de recrutamento de pessoas negras desenvolvedoras para quatro dos escritórios da TW no Brasil. Além disso, há também o Enegrecer Talks, que caracteriza-se por trazer discussões sobre sobre a tecnologia e diversidade racial no mercado de trabalho.
Iniciativas como essas são essenciais para que cada vez mais pessoas negras possam ter acesso a oportunidades e inserção no mercado tecnológico, que é uma área predominantemente ocupada por homens, brancos e de classe socioeconômica média e alta.
composição do mercado de trabalho, segundo PretaLab – Fonte: PretaLab
Movimento Black Money
O MBM é uma iniciativa que nasceu no Brasil com o intuito de reforçar o poder de compra entre a comunidade negra — que representa 51% dos empreendedores do Brasil e, em termos de população, tem a maior representatividade em números do país.
População residente no Brasil
O movimento busca também a educação, transformação e o desenvolvimento em uma perspectiva de inovação e empreendedorismo na comunidade citada. Por meio do blog do Movimento Black Money, é possível aceder a muitos conteúdos sobre tendências, inovação e mercado — sempre focados no afroempreendedorismo.
Outra iniciativa do movimento é a parceria em eventos, fomentando, assim, a discussão sobre o Black Money e promovendo, também, a inclusão de pessoas negras em espaços que são predominantemente brancos, facilitando o acesso ao conhecimento e networking, tornando esses espaços mais diversos.
Em outra vertical, o MBM também promove o Afreektech, que tem como proposta desenvolver novas habilidades e competências em empreendedoras e jovens negras, por meio de uma metodologia totalmente voltada a Transformação Digital, sem perder a essência que toda tecnologia e conhecimento é feito por pessoas para pessoa.
Outras iniciativas são o D’Black Bank, que visa ampliar a oferta de crédito destinada a empreendedores negros. Já o Start Blackup é o evento que conecta empresas a empreendedores e profissionais negros, pensando não apenas no networking, mas também na geração de novas oportunidades de negócios e carreira.
Next Step — Programa do Google
Estima-se que apenas 5% da população brasileira tenha domínio do idioma inglês. Um número espantador, ainda mais quando paramos para analisar os seus reflexos na população negra.
Além das barreiras de diplomas e formação profissional, estudantes e profissionais negros são também desfavorecidos em processos de recrutamento e seleção devido a exigência de fluência em um segundo idioma.
Neste mesmo texto, nós comentamos que para serem mais inclusivas, as empresas precisam abandonar uma visão do passado e adotar novas perspectivas desde a contratação de seus funcionários. E é isso que a Google está fazendo.
Uma iniciativa recente da empresa removeu a necessidade de fluência em inglês para oportunidades de estágio voltadas para jovens negros. O objetivo da empresa é aumentar a representatividade na companhia e inseri-los em um ambiente de aprendizado e desenvolvimento, acompanhado de aulas de inglês e mentorias.
Mudar o cenário da falsa harmonia racial que estamos inseridos é mais do que um objetivo, é uma luta. Muito além de dados, estamos falando de um tema histórico e uma problemática social, já que esses mesmos dados são reflexos de anos de escravidão, exploração e desvalorização da mão de obra de pessoas negras.
Esse processo, que transpassa décadas, segue impactando a comunidade de pessoas negras: são consequências, marcas e sequelas de uma época que — ainda que melhorada — segue oprimindo a população negra, e muitas vezes de forma velada.
É necessário criar espaços de discussão que conversem sobre os impactos do racismo no Brasil e como o preconceito está enraizado em ações cotidianas e corriqueiras. A escravidão criou um abismo de décadas entre pessoas negras e brancas, um abismo de oportunidades, construção social e desenvolvimento pessoal e profissional.
Quando conversamos sobre inclusão, precisamos abordar medidas eficazes e poderosas que garantam a presença de pessoas negras em espaços até então ocupados em sua grande maioria por pessoas brancas. Essas medidas precisam ir além de discursos, para fazer parte da estrutura das organizações.
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