Conto: O menino e a fogueira
* Levon Nascimento
Era uma vez um menino que sonhava o ano inteiro com a noite da fogueira. Ele não tinha quase nada, só a esperança das luzes produzidas por aquele fogo santo. Para a pobre criança, era quando tudo ficava diferente.
Esperava ansiosamente pelos traques, foguetes, chuvinhas de prata, biscoitos de goma de mandioca, xotes e baiões. Naquela noite de luz, pensava, tudo contribuía para que se sentisse gente e feliz.
Chegou a data. Escureceu mais cedo. Noites frias de junho no sertão.
Sob bandeirolas, pilhas de lenha amontoadas em frente a cada casa da vizinhança, à espera do ritual de riscar o palito de fósforo, menos na morada do menino que tanto desejara aquele momento.
Quanto mais a noite caía, uma a uma, as fogueiras eram acesas pelos pais de cada família. Ao brilhar o fogo, se via a alegria da criançada correndo, barulhando, atirando os fogos que ganharam, provando da magia daquele instante pelo qual ele tanto esperara.
E o menino sozinho, triste, amargurado e desesperançado. Pobre, mais do que nos outros dias. Parece que a miséria do ano inteiro também se recusava a partir naquela hora.
É que o pai do menino havia saído um mês antes para trabalhar fora, boia-fria, sem terra, espoliado pela sanha dos coronéis da região, e não voltara ainda.
Aquela que deveria ter se tornado a noite mais linda, era agora o momento do desprezo e do desamparo. Sim, porque o menino se sentia desprezado pela vida e desamparado pela sorte.
Onde estaria seu pai? Por que não viera preparar e acender a fogueira? Por que não trouxe seus fogos? Por que não compareceu com o pão de cada dia? E o menino chorou.
A lágrima que escorreu de seus olhinhos castanhos, da cor de tantos olhos de meninos desvalidos do sertão, rolou até o chão ressequido e poeirento de junho. Foi quando uma menina franzina lhe tocou a cabeça, abaixada de tristeza, chamando-o para ir brincar em volta da fogueira da casa em frente.
Ele até relutou em levantar o semblante, envergonhado das lágrimas que ainda caíam. Mas se pôs de pé e a seguiu.
Chegando lá, poucos passos adiante, olhos ainda banhados em choro, mas fixos no fogo que devorava as lenhas com o mesmo apetite com que moleque guloso engole uma boa canjica ou um pedaço de pão-de-ló, a partir do convite e do gesto de compaixão da menina, enxergou além da luz que dali se desprendia e viu mundos diferentes.
Lugares de gente sem tantas necessidades insatisfeitas quanto as dele. Países de abraços e carinhos, com mesas fartas, casas confortáveis, roupas bonitas, livros ilustrados e histórias fantásticas. Espaços sem dor e injustiças, nos quais a terra é de quem nela trabalha e em que os pais não precisam ser boias-frias como o seu. Viu homens que não subjugam as companheiras, mulheres que não se deixam subjugar e crianças que ao invés de trabalhar duro – como ele – leem e se divertem. Enxergou a fantástica maravilha de não existirem mais coronéis nem capangas, nem homens que os obedecem ou que apanham deles. Percebeu que nesse lugar as armas foram trocadas por flores e a alegria vive estampada no rosto de cada pessoa. Em sua visão através da fogueira, as pessoas poderosas eram aquelas que dão a mão a quem tem a mínima precisão que for.
A fogueira tornou-se um portal. O universo parou naquele instante que envolvia dor e mistério, contemplação e êxtase. O menino percebeu quem era e o que poderia ser, em que mundo vivia e para o qual lutaria por transformá-lo.
“Acorda, João! Acorda!” – ele ouviu longe. Logo a voz conhecida se tornou próxima. “Acorda, João!”. Era Zacarias, o pai do pobre menino, atrasado pela falta de transporte, que acabara de chegar. Nas costas trazia um fardo com várias coisas, fogos, alimentos, roupas e alegria no semblante, fortemente marcado pelo tempo e pelo trabalho. Estava feliz em rever o filho. Isabel, a mãe, já estava preocupada com a demora do marido e a tristeza da criança.
O menino João acordou de seu sonho, devolvido ao mundo real através do limiar aberto na luz da fogueira da vizinhança, despertado pela voz enternecida do pai. Abraçou-o, em gesto pouco comum na crueza do sertão. Afinal, ele vira esse carinho na visão do instante anterior.
João não estava mais infeliz. Acordara. Para a vida. A fogueira, mística, lhe revelara que um outro mundo é possível, menos injusto, fraterno e solidário. Agora era possível viver a alegria poética daquele curto interregno de amor.
Uma cantiga popular tocava em alguma casa. O som chegava para embalar a surreal lição que aprendera naquela noite de alegria verdadeira: “São João está dormindo/ Não acorda não!/ Acordai, acordai, acordai, João!”
* Levon Nascimento é sociólogo, professor de História e mestrando em “Estado, Governo e Políticas Públicas” pela Fundação Perseu Abramo e Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.
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