Imigrantes africanos refletem sobre racismo no Brasil

Morte de congolês provocou entre os jovens africanos que moram em Salvador um misto de raiva e medo.

Ag. A TARDE

De Salvador, Mohamed Ndiaye ajuda a família no Senegal – Foto: Felipe Iruatã / Ag. A TARDE

Mohamed Ndiaye não é de fazer farras. Muçulmano, o senegalês de 30 anos abstém-se do consumo de bebidas alcoólicas. Além disso, é vendedor ambulante e trabalha, às vezes, todos os dias da semana, comercializando camisas de times de futebol brasileiros e estrangeiros, além de equipes de basquete dos Estados Unidos e uma ou outra camisa de passeio trazida de seu país, em uma barraca padronizada pela prefeitura na Avenida Sete. Parte do dinheiro que ganha, manda para ajudar a família no outro lado do Oceano Atlântico.

Mas lá, no outro lado, em Iaundé, capital da República de Camarões, no domingo passado, uma partida de futebol foi um bom motivo para Mohamed comemorar.

O Senegal venceu a disputa de pênaltis contra o Egito, quando o craque Mané converteu o último chute, e tornou-se pela primeira vez campeão da Copa Africana de Nações. O jovem e outros cinco compatriotas celebraram o feito histórico com salgadinhos, palmito, sucos e refrigerantes, reunidos na casa de um dos seus amigos no bairro da Saúde.

Em boa parte do tempo, porém, é difícil que os imigrantes africanos sintam-se realmente em casa no Brasil. Mohamed evita fazer críticas contundentes ao racismo no país que o acolheu, mas a imagem do congolês Moïse Kabagambe sendo espancado até a morte no Rio de Janeiro provocou entre os jovens africanos que moram em Salvador um misto de indignação, raiva, medo e surpresa.

“Independentemente de ser negro e imigrante, ninguém deve ser tratado assim”, pontua Mohamed, que ressalta gostar de Salvador e apreciar as afinidades culturais da cidade com a África.

Violência e agressões à dignidade humana que, eventualmente, são percebidas com mais facilidade pelo olhar de quem vem de fora do contexto. Como o historiador carioca Paulo Cruz que, recentemente, momentos antes de embarcar de volta ao Rio, tirou fotos de bonecos de cerâmica de Pretos Velhos que figuravam na vitrine de uma loja do aeroporto como escravos de cerâmica à venda.

O professor de línguas Adéchina Wenceslas Padonou nacional do Benin, fala sobre racismo na Bahia pela ótica de estrangeiros | Foto: Olga Leiria / Ag. A Tarde

Mohamed começou a sentir diferenças no tratamento que recebia ainda no Paraná, primeiro estado brasileiro onde morou e trabalhou em um frigorífico, na cidade de Toledo.

Com o tempo, foi percebendo, por exemplo, que no transporte público pessoas brancas mudavam de lugar quando ele se sentava no mesmo banco. Situação que não é novidade para os negros brasileiros, mas que choca quem vem de países subsaarianos onde não houve a política de apartheid.

Um dos presentes ao encontro na Saúde para ver o jogo, o consultor senegalês Mamadou Gaye, ex-diretor da Aliança Francesa na Bahia, esteve no dia anterior à partida na manifestação realizada no Pelourinho para cobrar justiça por Moïse.

Ao falar da importância de integrar os jovens africanos à sociedade, Mamadou não pensa nem no risco de violência extrema, mas aponta a necessidade de que essas pessoas ganhem visibilidade social para poderem, minimamente, ter apoio quando se tratar de direitos trabalhistas, por exemplo.

Mamadou afirma que, para quem é de fora, é muito surpreendente descobrir o racismo no Brasil. “Ainda existe uma imagem do país no exterior como uma democracia racial. Para quem vem aqui, a primeira coisa é a surpresa. Em segundo lugar, para mim, que tenho origem no Senegal, na África, tem um sofrimento de ver as condições das pessoas negras nesse país e particularmente nesse estado. Ver a persistência desse racismo estrutural é muito chocante”, afirma o consultor.

Por outro lado, Mamadou declara ter se sentido muito bem acolhido na Bahia. “Eu, como senegalês, descobri aqui muitas conexões entre a Bahia e o Senegal. Ao mesmo tempo em que me sinto em casa, acolhido, reconhecido, que minha cultura é valorizada através da valorização da cultura negra, a gente fica sem entender ao mesmo tempo a rejeição às pessoas que vivem essa cultura”. Um sentimento dúbio, de acolhimento e decepção com a falta de progresso com as questões raciais.

“A força da Bahia é a diversidade dela, o fato de ter essas raízes africanas”, pondera o consultor, que após deixar a Aliança Francesa tem se dedicado à transformação cultural de organizações, com foco na empatia, além de se preparar para fomentar o intercâmbio cultural entre Salvador, Dacar e Paris.

O Togo nunca conquistou um título relevante no futebol e, na única vez que foi a uma Copa do Mundo, em 2006, na Alemanha, tinha em sua seleção quatro jogadores brasileiros que foram naturalizados togoleses especificamente para disputar o mundial.

Mas foi na Copa anterior, de 2002, que o togolês se encantou com o Brasil que apareceu nas telas do mundo inteiro. Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo fizeram um jovem candidato a atleta em seu país sonhar em conhecer o Brasil.

A carreira no futebol não foi adiante e Aboudouraoufou Zakari investiu na sua outra atividade, o trabalho de estilista. Mas a vontade de cruzar o Atlântico permaneceu e ele foi para São Paulo, em 2015.

Tornou-se amigo de um baiano que tinha imóveis em Salvador que, encantado com as roupas que viu no corpo do próprio togolês, lhe disse que ele teria mais sucesso vendendo o material na Bahia.

Roupas

Zakari recebeu do novo amigo o convite para se instalar em um imóvel de sua propriedade e, desde 2016, começou a produzir peças de roupa à noite e nos finais de semana, depois de sua jornada de trabalho como ambulante, a fim de realizar o seu sonho. Começou com uma loja pequenininha no Bonocô e hoje é dono da Raufzak Modas Africanas, na Barroquinha.

Zakari afirma que, em sete anos de Brasil, não passou por experiências de racismo, embora saiba que exista. “Espero nunca passar por isso, aqui eu me sinto em casa”, declara o estilista para quem Salvador é um pedaço da África. “O povo baiano parece africano. Todos aqui se parecem africanos e o povo baiano tem muito carinho com estrangeiros, inclusive os africanos”.

Ele se diz apaixonado pelo Brasil e sonha poder um dia conhecer Ronaldinho Gaúcho e também se naturalizar. “Na minha cidade, todos me chamam de brasileiro, então, preciso ser um brasileiro de verdade”.

Sobre a morte de Moïse, o estilista declara ter ficado muito triste, não por ele ser africano, mas por ser um ser humano. “Nem um animal merece morrer desse jeito, imagine um humano. Eu tenho 37 anos e nunca tinha visto alguém tirar a vida do outro antes de chegar ao Brasil”, afirma.

“Não importa a nacionalidade, de onde se vem. Precisamos sentir pena um do outro. A gente nasceu para sobreviver e ser feliz, não para ser tratado como animal por outras pessoas”.

Prestes a concluir a graduação em estudos africanos na Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unilab) do Ceará, e autor de um artigo sobre a influência do passado colonial no racismo contra os africanos em Portugal, o estudante bissau-guineense Nésio Gomes Correia é mais incisivo e pontua que sempre é importante deixar claro quando algo está incorreto.

“Esse crime mostra a cara do Brasil como um país estruturalmente racista e que não o admite. Algumas vozes ainda trazem o racismo reverso, que é algo que não existe em lugar algum do mundo”.

Depois de morar em Salvador por cinco anos, a cantora nigeriana Okwei Odili retornou a seu país no ano passado, entre outras coisas porque quer ajudar a eleger um novo presidente nas eleições que acontecem daqui a um ano, em 18 de fevereiro de 2023.

De lá, viu as imagens do assassinato de Moïse. “Eu me recusei a ver o vídeo, mas acabei assistindo. Sua família tem que lidar com sua perda e também com essas imagens horríveis. Eles não merecem isso. Um jovem perdeu a vida exigindo seus direitos humanos que seus assassinos acham que ele não merecia. Como migrantes e imigrantes, há pessoas que tendem a nos explorar de diferentes maneiras e em diferentes níveis. Você sente que tem pouco ou nenhum direito”, declara a cantora, para quem não é possível que vidas sejam perdidas porque algumas pessoas não têm a capacidade de conviver com outras.

Futuro

Okwei reflete ainda sobre o futuro quando acontecem casos como esse. “Como uma mãe, isso faz você pensar também no seu filho. Crimes de racismo deveriam ter mais julgamento e consequências”, declara a artista, ao ressaltar que migrantes africanos em alguns lugares são expostos a uma discriminação que não existe em sua terra natal. “Minha ignorância sobre o racismo me protegeu na minha chegada ao Brasil por um curto período. Mas, depois, aprendi a sair de uma loja e não gastar meu dinheiro lá se os seguranças continuam me seguindo”.

Apesar dos episódios de discriminação e violência contra negros no Brasil, a cantora denota apreço pelo país. “O racismo está vivo e é uma pena, mas não vou permitir que um pequeno grupo de pessoas ignorantes e medrosas tirem a beleza que é o Brasil e o povo brasileiro. Os brasileiros são os melhores”.

O professor de francês e espanhol Adéchina Wenceslas Padonou, do Benin, teve a experiência de se sentir vigiado ostensivamente em dois shoppings, o Itaigara e o Center Lapa. No primeiro, se viu observado mesmo enquanto fazia uma refeição. No segundo, um segurança o acompanhou e, não satisfeito, perguntou a ele o que ele queria.

Na saída do Itaigara, ao pedir um carro pelo Uber, teve que perder tempo convencendo o motorista de que ele era o seu passageiro. “Eu fiquei um minuto dizendo que era Adéchina até que ele abrisse a porta”, declara o beninense. O motorista afirmou que teve dificuldades para entender o sotaque. Adéchina retrucou que ele, o motorista, devia estar esperando uma pessoa branca.

Fora isso, por pelo menos duas vezes dentro de um supermercado, enquanto aguardava na fila para pagar pelas compras, foi abordado por pessoas em busca de informação como se ele fosse funcionário da empresa, embora não estivesse com uma roupa parecida com o uniforme. “Meu país não é racista. Eu nunca parei para saber o que era racismo de verdade”, explica Adéchina, que ganhou uma bolsa de estudos para cursar letras espanholas no Brasil e escolheu Salvador ao pesquisar as conexões entre a Bahia e o Benin.

O incômodo com situações de discriminação que sentiu na pele se transformou em ódio, irritação, nervosismo e insegurança, segundo suas próprias palavras, quando viu o noticiário sobre Moïse: “Eu não sou assim, mas quando vi aquele vídeo, com meu irmão sendo batido, fiquei com muito ódio”, afirma o professor, destacando que teria ficado mais inseguro se soubesse de um assassinato semelhante ao de Moïse em Salvador.

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