Frei Feliciano e o ato de ler

Por Levon Nascimento

Na manhã de 30 de abril de 2023, um dia raramente nublado e fresco em Montes Claros – cidade costumeiramente quente, como o sol do Norte de Minas – resolvi bater perna pelo centro. Domingo e em véspera de feriado, tudo totalmente esvaziado e com lojas fechadas, por óbvio. Passei em frente ao local de uma antiga loja de livros (este ponto pintado de verde, na foto que acompanha o texto). Não sei o que funciona ali agora. Mas a história que vou contar a seguir me veio à memória de imediato.

Em novembro de 1994, fui eleito delegado-jovem da Paróquia São Sebastião de Taiobeiras para a 4ª Assembleia de Pastoral da então Diocese de Montes Claros. Era um evento grande, que durava quatro dias, no qual eram decididos os compromissos da Igreja e as diretrizes pastorais católicas para o Norte de Minas.

Fomos para a assembleia no carro da paróquia. Dirigindo, o próprio pároco, Frei Feliciano van Sambeek, um franciscano holandês, bonachão, gente muito boa, alto, cabelos branquíssimos, bochechas rosadas, como é comum aos nativos dos Países Baixos, riso fácil, que falava num sotaque engraçado, meio que assoviando ao final das frases. Ele gostava de tocar teclado e cantar. Até que tentou isso durante as missas, mas era difícil conciliar a presidência da celebração e a atividade musical. Além de nós, iam também a Irmã Laudeci, representando as religiosas da paróquia; Vitor Hugo, conselheiro paroquial; e mais outras duas pessoas, também escolhidas para a delegação taiobeirense em Montes Claros.

O evento começaria à noite, com missa solene na Catedral. No restante dos dias, a programação seguiria na Casa de Pastoral do bairro Santo Antônio. Como chegamos no início da tarde, fomos caminhar pelo centro de Montes Claros.

No “Quarteirão do Povo Simeão Ribeiro”, rua transformada em galeria comercial, onde o trânsito de veículos automotores é impedido até a atualidade, que leva até a praça da primeira Matriz montes-clarense, entramos numa livraria.

Distraidamente, todos nós a observarmos os produtos à venda, assistimos ao Frei Feliciano pegar um livro e dizer: – “Este foi o primeiro que li, ainda jovem, quando estava aprendendo português para vir em missão ao Brasil”. Era “Dom Casmurro”, originalmente lançado em 1899, de Machado de Assis. – “Muito bom! Muito bom! É o maior autor da sua língua”. O frade tinha o hábito de repetir duplicadamente as expressões de exclamação.

Todo esse rodeio, até aqui, para eu revelar que senti vergonha naquele momento. Envergonhado pelo motivo de que ali eu era um jovem que cursava o 3º ano Técnico em Contabilidade, equivalente ao 3º ano do Ensino Médio, e jamais lera Machado de Assis. Já ouvira falar, mas jamais tivera a iniciativa de conhecer. Nem a ele, como a nenhum de tantos outros e outras, da honorável galeria de escritores nacionais.

Senti-me acanhado, pois um estrangeiro conhecia melhor a literatura do meu país, mais do que eu, brasileiro, estudante, jovem, liderança dos grupos da minha cidade, blá, blá, blá, etc. Quando a gente é novo se acha, né?

Eu até que lia. O primeiro que consumi inteiramente foi “O Burrinho Alpinista” (de Iêda Dias da Silva), na 2ª série. Mas era o indicado pela escola. O zero-um, de fato, que considero, foi “A Ilha Perdida” (de Maria José Dupré), na 4ª série, que me abriu as portas para a Coleção Vaga-Lume, da Editora Ática. Também os clássicos, como “A Escrava Isaura” e “O Seminarista”, ambos de Bernardo Guimarães, eu já tinha lido naquela ocasião. O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry), O menino do dedo verde (Maurice Druon), Os meninos da Rua Paulo (Ferenc Molnár), também já constavam do meu currículo. Mas era pouco. Muito Pouco! Muito Pouco! – parafraseando Frei Feliciano. Faltava o “bruxo do Cosme Velho”, como alcunhavam ao Joaquim.

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu e viveu a maior parte da vida no século XIX. Filho de um “mulato” (palavra racista usada aqui para destacar o quanto o racismo é insidioso, inclusive na cultura) brasileiro com uma mulher branca, imigrante portuguesa.

Escritor brilhante e fundador da Academia Brasileira de Letras, fez sucesso justamente no momento em que a recém-nascida República buscava branquear o Brasil através da política de importação de imigrantes brancos famintos, que viviam na miséria da Europa industrializada, doando-lhes terras e recursos no Sul do país, enquanto empurrava os negros recentemente alforriados para morros e favelas; e defenestrava os poucos povos indígenas que sobraram dos tempos coloniais.

Machado foi “clareado” nas fotos e nos livros. Não era suportável para as classes dirigentes racistas brasileiras, que o maior escritor das Américas, do hemisfério Sul e, quiçá, da própria língua portuguesa, fosse um pardo.

Sentir vergonha da própria ignorância, longe de baixa autoestima, num tempo como agora em que muitos se orgulham do próprio desconhecimento e se proclamam “coaches do abstrato”, deveria ser prática comum para quem deseja “superar os desafios” e “vencer na vida”, se é que isto é possível (muita ironia envolvida).

Vergonha na cara não mata. No mínimo, melhora o vocabulário.

Frei Feliciano, que foi pároco de Taiobeiras entre 1993 e 1995, partiu para a morada eterna em 2 de junho de 2021, aos 92 anos de idade, e eu, hoje, pelo menos sei quem são Capitu e Bentinho.

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