Filme “Alice Lembra” leva magia do cinema ao sertão baiano, em Vitória da Conquista

Imagine uma cidade cenográfica erguida em meio à vegetação da caatinga, no sertão baiano, com direito a banco, cartório, presídio, lojas, casas e até um palácio. No entorno desse cenário, dezenas de profissionais do audiovisual se movem para fazer uma nova produção cinematográfica do interior brasileiro ganhar vida. O elenco, tão diverso quanto o Nordeste que bem os representa, se prepara para entrar em cena. Silêncio no set. Ouve-se o som da claquete. Mais uma gravação de Alice Lembra acaba de começar.

Essa é a magia do cinema que se faz ainda mais presente no município de Vitória da Conquista (BA) desde o dia 19 de novembro, quando começaram as filmagens do segundo longa-metragem infantojuvenil escrito e dirigido pelo cineasta Daniel Leite Almeida. Produzido pela Ato3 Produções, o filme é uma continuação do premiado musical Alice dos Anjos, vencedor de seis candangos no 54º Festival de Brasília e finalista do 22º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.

Em uma nova jornada pelo fantástico País das Macaúbas, Alice, agora uma pré-adolescente com trezes anos de idade, irá descobrir que a memória é um poderoso instrumento contra as opressões. Na inédita sequência que fará parte de uma trilogia, ela precisará lutar contra uma doença que acomete seus amigos, a Síndrome do Esquecimento, e uma tentativa de golpe de Estado na chamada Cidade Modelo, a capital do país encantado que ela precisará desbravar.

Livremente inspirado no universo de Lewis Carroll, autor do clássico Alice no País das Maravilhas, Alice Lembra traz novamente para a produção audiovisual nacional, de forma lúdica e poética, o protagonismo do sertão e do sertanejo, da cultura popular, dos povos tradicionais e do interior baiano. E se no primeiro filme a aventura da personagem em busca da própria identidade se dá a partir do encontro com a coletividade, desta vez, a história traz para o primeiro plano a busca por sua ancestralidade.

“A identidade coletiva não responde à totalidade daquilo que somos. Então, eu percebi que, além de sujeitos sociais e coletivos, nós somos sujeitos individuais, com as nossas subjetividades, e somos sujeitos carregados de memória e ancestralidade. Cada uma dessas identidades – a coletiva, a individual e a ancestral – estão intrinsecamente ligadas. E aí eu quis abordar isso em três filmes, de modo que cada filme trouxesse enquanto tema central uma dessas três identidades, que, no caso de Alice Lembra, é a identidade ancestral”, explica o diretor, Daniel Leite Almeida.

Segundo ele, esta será a obra que irá encerrar a trilogia, apesar de ser gravada antes mesmo do segundo filme da saga. O livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak, foi uma das referências utilizadas pelo cineasta durante o desenvolvimento do roteiro. “Acho que todos os três filmes têm uma questão muito pessoal presente e, em Alice Lembra, é o resgate de uma memória acerca da minha própria origem. Eu sempre soube que tenho origem indígena, minha avó sempre me contava que o avô dela era indígena, mas ela nunca me falou qual era a etnia. E nos últimos anos isso tem me inquietado porque eu não saber essa etnia é o resultado de um apagamento identitário. Então, enquanto faço o filme, é como se eu estivesse cavucando esse meu não-lugar, esse esquecimento, essa ausência”, complementa Daniel.

A personagem que encarna essa busca apontada pelo diretor coloca também o protagonismo negro em evidência no filme. Alice será mais uma vez vivida por Tiffanie Costa, que tinha apenas 8 anos quando o primeiro longa foi gravado. Moradora da pequena cidade interiorana de Malhada de Pedra, ela foi projetada em sua comunidade com Alice dos Anjos, recebendo homenagens e emoldurando sonhos que antes eram difíceis de serem alcançados em um contexto marcado pela escassez de produção artística.

“Quando eu estou no set, eu me liberto. Sou eu mesma. Eu estou ali atuando, e mesmo assim não tenho vergonha de nada. Eu simplesmente dou tudo de mim e mostro que eu realmente nasci para atuar, para estar envolvida na arte. E toda vez eu penso que um dia pode ser eu sendo a diretora de um filme ou sendo outra vez uma atriz principal. É algo que realmente me encanta”, conta a atriz, agora com 13 anos.

Mais de 200 pessoas estão envolvidas na produção do longa, que conta com uma equipe diversa, composta majoritariamente por pessoas negras, além de profissionais indígenas, atuantes seja nas áreas técnicas, seja no elenco ou figuração. O principal set de filmagens é a Casa dos Carneiros, fundação localizada no distrito do Pradoso, zona rural de Vitória da Conquista. “É o lugar que nos permite fazer uma imersão nesse sertão mágico de Alice”, revela o diretor. E é nesse mesmo local que o departamento de cenografia trabalha, desde outubro, na construção da Cidade Modelo. São cerca de 20 pessoas envolvidas só na equipe de arte, que abarca outros departamentos como maquiagem, figurino e produção de objetos.

Para o diretor de arte, Saulo Goveia, a construção da Cidade Modelo, enquanto um dos principais cenários do filme é, sem dúvidas, um dos principais desafios da produção. O processo criativo que deu origem à concepção visual desse ambiente, central para a história, teve início mesmo antes da etapa de pré-produção do filme. E quem assumiu o desafio de chefiar a equipe responsável por concretizá-lo foi o cenógrafo Gilsérgio Botelho, membro da Cia Operakata. “É uma equipe dos sonhos, que vem realizando um trabalho primoroso, com uma excelência artística e um padrão técnico muito elevados”, afirma Saulo.

Outras referências da cena artística regional também fazem parte do longa, como o compositor e maestro João Omar, responsável pela trilha sonora, ao lado do artista tupinambá Rômulo Guajupiá. Atores e atrizes locais como Ricardo Fraga, Dayse Maria e Neto Cajado, entre outros, retornam aos seus personagens do primeiro filme da trilogia. Já Fernando Alves Pinto volta a interpretar o Bode Preto. Além disso, há novamente a participação do Pajé Aripuanã, indígena tupinambá que esteve em Alice dos Anjos, trazendo toda a sua sabedoria ancestral, que agora ganha ainda mais destaque em Alice Lembra.

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