Condeúba: A rainha das xiringas e dos ximangos
Paulo Oliveira Meus Sertões, Reportagens
Elita da Silva Pereira, 63 anos, chega perfumada, com os cabelos soltos e unhas feitas na matriz da empresa. Sua roupa tem bordados de flores nas mangas. No pescoço e no pulso, um cordão de ouro e um relógio. Está vestida desse jeito porque vai viajar para Vitória da Conquista, a 150 quilômetros de Condeúba, cidade do semiárido baiano. No entanto, não é assim que fregueses e fornecedores estão acostumados a vê-la.
A responsável pelo império de biscoitos (ximangos e xiringas) normalmente usa camiseta com a estampa da marca da empresa, calça de malha, tênis e touca na cabeça. O cheiro de gordura e de outros ingredientes usados na cozinha industrial substituem o perfume.
Elita dispensa gerentes, encarregados e supervisores. Prefere trabalhar só na supervisão de sete lanchonetes, um restaurante, um salão de eventos, uma pousada e na distribuição de produtos para feiras-livres, lojas e pontos de venda de pelo menos 16 cidades baianas e uma mineira. Um de seus maiores dilemas é não ter começado a preparar a sucessão.
O grupo Biscoitos Condeúba é uma das três indústrias da terra natal da empresária – há ainda uma confecção e uma cerâmica. Juntas produzem 410 empregos (19,5% gerados pela panificação e produção de alimentos). Difícil acreditar que no início tudo não passava de uma tenda que vendia cachaça e fichas para uma mesa de sinuca.
ALFABETIZAÇÃO TARDIA
O lavrador Manuel Ribeiro Sobrinho casou duas vezes e fez 20 filhos. Eliete é uma das mais novas da união do pai com Hercília Ribeiro da Silva, a segunda mulher. Entre oito e dez anos, ela ajudava na roça, cuidava dos sobrinhos pequenos, acompanhava a mãe nas costuras e na feitura de biscoitos e bolo de milho pisado no pilão, que eram levados em balaios na cabeça para serem vendidos a duas léguas de distância (o equivalente a 12 km).
Também ouvia as façanhas da avó, cozinheira de eventos realizados por fazendeiros abastados. Isabel Ribeiro ia para a casa dos contratantes duas semanas antes de um casamento. Nesse período, preparava doces, tortas, bolo de arroz, o que for possível imaginar. Além disso, engomava os vestidos e as toalhas que seriam usadas na festa.
Nascida na Fazenda Queimadas, Elita foi estudar, com autorização do pai, aos 10 anos no centro de Condeúba. O agricultor queria que ao menos os filhos mais novos aprendessem a ler e escrever.
Com 15 anos, a menina deixou a 5ª série pela metade e voltou à roça para ajudar a família a garantir o sustento. O casamento aos 17 anos abreviou ainda mais a adolescência.
Mãe de dois filhos, um deles diagnosticado como portador de púrpura plaquitoquêmica, doença autoimune caracterizada pela destruição das plaquetas e que costuma evoluir para leucemia. A gravidade do quadro levou Elita a se mudar para São Paulo, em 1975. Lá, trabalhou como doméstica para custear o tratamento do menino. Nove meses depois, a criança morreu.
O RETORNO
Ao retornar para Condeúba, a jovem passou a trabalhar como sacoleira de confecção. Em 1979, aos 24 anos, decidiu voltar a estudar, sem saber que a partir dali sua vida daria uma guinada. Para pagar o ginasial (equivalente ao período entre a 5ª e 8ª série) em colégio particular, começou a fazer biscoitos de fécula de mandioca e polvilho azedo.
“Logo o meu dom de cozinheira, biscoiteira e boleira passou a ser reconhecido. Os professores encomendavam, além dos biscoitos, frango assado, leitão à pururuca, feijoada” – recorda.
O sucesso culinário, baseado em receitas da família, a fez desistir do concurso para o Banco do Brasil ao qual havia se inscrito. Decidiu apostar no empreendedorismo. De 1983 a 1987, trabalhava no fundo do quintal de casa. Em dezembro, engravidou mais uma vez. Para ter quem lhe ajudasse, improvisou a cozinha na tenda onde o marido Adérico Pereira vendia cachaça e fichas de mesa de sinuca. A vendinha era mais espaçosa que seu quintal.
“Comecei colocando um pastel, um biscoito, um doce de leite. Um dia resolvi fazer uma comida. Aí nasceu um mini restaurante. As mesas eram as caixas de refrigerante. Nessa época, a produção era pequena se comparada a de hoje, mas eu trabalhava 20 horas todos os dias. Virava a noite todo fim de semana” – conta.
O sucesso fez surgir nos anos 1990 a empresa Biscoitos Condeúba, responsável pela produção de 80 variedades de biscoitos, bolos, tortas, salgados para festa e salgados para balcão. Elita só não esperava enfrentar em seguida uma grave crise financeira na cidade.
Com a perda de órgãos públicos e instituições – IBGE e a Emater dentre eles -, Condeúba empobreceu. A situação piorou com a venda do Baneb (Banco do Estado da Bahia) para o Bradesco, o que provocou a redução de 90% do número de empregados da agência bancária.
A crise fez Elita pensar em mudar de cidade. No entanto, teve uma ideia que salvou seu negócio. Com um velho Opala Diplomata, passou a entregar biscoitos, doces e salgados em feiras-livres e para ambulantes com pontos nas praças de municípios vizinhos.
“Como tinha raízes bem plantadas e um trabalho respeitado, decidi investir em feiras-livres ou praças e passei a fazer entregas em Vitória da Conquista, Jânio Quadros, Maitinga, Guajeru, Malhada de Pedras, Rio do Antônio, Brumado, Caculé, Caitité, Mortugaba, Jacaraci, Licínio de Almeida, Tauape (distrito de Licínio de Almeida) e Porto Seguro. As entregas são feitas de uma a três vezes por semana” – lembra.
A iniciativa deu tão certo que os carros velhos foram substituídos por caminhonetes. Em três municípios foram instaladas lanchonetes – Piripá, Cordeiros e São João do Paraíso (MG). Para atender todos esses locais são produzidos cerca de 1.500 kg de xiringa (biscoito também conhecido como avoador) por semana e até 30 mil bolos de dez tipos diferentes por mês. O consumo de leite mensal é de 20 mil litros, adquiridos de 15 produtores rurais da cidade.
Elita Pereira conta que quando começou a cozinhar não tinha livro, revistas ou programas como o de Ana Maria Braga. Em casa, possuía apenas um radinho de pilha e as lembranças de receitas caseiras. Adquiriu conhecimentos frequentando a Feira Internacional da Panificação, Confeitaria do Varejo Independente de Alimento (Fipan), a maior do ramo na América Latina, realizada anualmente em São Paulo. O encontro trata de temas como automação comercial, máquinas, equipamentos, matérias-primas, insumos, embalagens, acessórios e produtos finais.
“Essa feira me ajudou a melhorar a gestão e criar novos produtos. Descobri também fornecedores de produtos de qualidade, comprando direto da indústria” – relata.
Sem nunca ter feito curso de confeiteiro ou frequentado o Sebrae, galgou o sucesso criando ou aperfeiçoando o receituário, diminuindo o teor de sal e de gordura. A marca biscoitos Condeúba foi patenteada no final dos anos 1990.
“Nas receitas de minha avó e de minha mãe houve algumas modificações, mas as medidas são as mesmas. O padrão do biscoito mudou. O polvilho mudou, as gorduras mudaram. Então as mudanças que tiveram foram essas. Mas a receita da brevidade é mesma, do biscoito doce é mesma, as receitas dos ximangos são as mesmas. É claro que tem outros ximangos variados (sabores de milho, leite, queijo, dentre outros). Aquilo que eu trouxe de essência hereditária, eu continuo. Principalmente no zelo, no cuidado” – afirma.
POÇOS ARTESIANOS
A fabricação de alimentos requer uso de muita água. Nos últimos anos, abastecimento do Açude Champrão deixa a desejar em termos de qualidade e quantidade. Em 2011, a empresária condeubense abriu um poço no quintal de casa.
“Eu não uso 20% da água que o poço oferece. Foi feita a análise e ela tem muita qualidade. Essa água abastece o restaurante e a pousada que eu tenho em frente à Igreja Matriz de Santo Antônio. Na filial do centro da cidade, onde tenho a área de eventos, há um outro poço artesiano” – diz Elita.
A empresária comenta que a crise econômica que o Brasil atravessa não diminuiu as vendas, mas reduziu as margens de lucro. Também observa que os consumidores estão cada vez mais exigente, principalmente por terem contato direto com ela.
“Vou dar uma ideia dessa exigência. Eu compro uma pré-mistura do moinho M. Dias Branco para produzir pão integral. Graças a isso, chego a vender 100 peças de 500 gramas em cada uma das feiras em Caculé, Mortugaba e Caetité. O pão é feito com essa mistura e com os toques que dei. Ouvi muitos elogios, mas um dia um cliente criticou, dizendo que o pão estava salgado. Liguei para o 0800 do fornecedor e falei com uma nutricionista. Os funcionários do moinho se surpreenderam. O vendedor disse que fez vendas por todos os cantos da mistura e era a primeira reclamação que recebia. Quando o proprietário está à frente do negócio, ele recebe as reivindicações de forma imediata” – argumenta.
Uma grande placa do grupo Biscoitos Condeúba está cravada na entrada da cidade. Foi colocada ali, com autorização da prefeitura, em 2010. Na eleição seguinte, o novo prefeito exigiu a retirada da propaganda, alegando que precisava do local. Durante quatro anos, o local ficou vazio.
Pacientemente, Elita aguardou o mandato do administrador municipal terminal e fez um novo pedido para o prefeito que o derrotou na eleição seguinte. A recolocação foi autorizada.
“A decisão de retirar a placa foi arbitrária. Condeúba hoje é reconhecida em todas as partes como a terra do biscoito. Carrego o nome da cidade em meus produtos” – argumenta a empresária.
Isso, no entanto, são águas passadas.
A preocupação atual de Elita Pereira é começar a preparar a sucessão no comando da empresa. O marido se aposentou em 2013. Os quatro filhos são ligados ao grupo, sendo que uma filha é advogada e um rapaz se formou em administração. Enquanto não decide, continua a trabalhar de 16 a 20 horas por dia.
Suas tarefas são tantas que durante a entrevista para Meus Sertões foi interrompida 12 vezes para tratar de questões que vão desde a compra de extintores para uma das lojas até a entrega da sobra de um bolo de casamento. O perfil centralizador faz com que treine cada funcionário, ensinando desde a forma de lavar a mão até como arrumar a geladeira e estabelecer os produtos de limpeza que serão utilizados em cada departamento.
A empresária se desculpa por não poder mostrar a fábrica de biscoitos porque está atrasada para a viagem a Vitória da Conquista. No entanto, sugere que vejamos uma reportagem da TV UESB (Universidade Estadual do Sudeste da Bahia), que pode ser acessada abaixo.
Elita diz que se realiza no trabalho, mas acalenta um sonho desde que concluiu o segundo grau no Colégio Kleber Pacheco, em Vitória da Conquista, no ano de 2000: voltar a estudar cursar faculdade de engenharia civil ou de administração.
PAULO OLIVEIRA
Jornalista, 56 anos, traz no sangue a mistura de carioca com português. Em 1998, após trabalhar em alguns dos principais jornais, assessorias e sites do país, foi para o Ceará e descobriu um novo mundo. Há dez anos trabalha na Bahia, mas suas andanças não param. Formou comunicadores populares nas favelas do Rio e treinou jornalistas em Moçambique, na África. Conhece 14 países e quase todos os estados brasileiros. Suas reportagens ganharam prêmios de direitos humanos e de jornalismo investigativo.
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