Clarivaldo Trincheira

Por Nando da Costa LimaNando-Nandão-1Quem viu tudo foi seu Pedro, apesar dos seus 97 anos e as vistas curtas o seu depoimento era a única pista da polícia. O velho foi testemunha ocular de um crime: ele só sabia que o matador era pequeno. A polícia prendeu uma cacetada de baixinhos, mas foram todos liberados por falta de provas. As investigações continuaram com a prisão de um anão fisioterapeuta, mas este tinha o álibi que nesse dia estava massageando a coluna de Abinal na Rua da Granja. Passou o dia todo friccionando a região lombar do butequeiro, muita gente viu. A polícia arquivou o caso e a família do morto apelou para Clarivaldo Trincheira, investigador profissional e competente formado por correspondência cujo único defeito era não gostar de tomar banho. Tava ruim pra Clarivaldo, um caso simples pra sua capacidade e ele dependendo de uma testemunha quase inválida. Pegou o endereço da vítima e partiu na sua Rural afim de achar uma pista mais nítida. A vítima morava na boate “Calor Humano, a Continuidade do Seu Lar”, uma casa especializada em satisfazer taras. Clarivaldo estava vestido como sempre, ele fazia o estilo Inspetor Maigret, e mesmo curtindo um calor de 40 graus não tirava a roupa de frio do personagem de Simenon. Seu primeiro contato foi com a relações públicas da boate, e a decoração chamou a sua atenção: na entrada um pôster de Julio Iglesias, na sala tinha mais seis, dois em cada banheiro e um no bar. Sua mente de detetive funcionando como uma máquina de decifrar enigmas logo deduziu que o dono da casa era fã de Julio Iglesias. O recepcionista, rapaz mais escandaloso que mulher de novo rico dando bronca na empregada doméstica perto das amigas, deu gritinhos e mais gritinhos… Clarivaldo, desconfiado como todo grande mestre da investigação, sentiu que seu guia não passava no teste da farinha. Deu logo a entender que estava ali só a serviço. Tomou nota dos hábitos da vítima: pela manhã sauna com Pedrão, à tarde judô com Pedrão. À noite acontecia o diferente: Pedrão virava “Najara”, a encantadora de serpentes, mas era cobra mesmo. Ela ficava num caixão cheio de serpentes e o povo fazia fila pra ver. Najara não pôde ajudar em nada, morreu engasgada com uma jararaca no meio de uma apresentação, faleceu mais ou menos na mesma hora em que o namorado foi assassinado, ficando assim afastada a hipótese de um ter matado o outro.
Clarivaldo foi para casa refletir, lá ele teria um pouco de paz. E olha que a feiúra da mulher não inspirava muito a paz, ela lembrava um jumento cansado e andava sempre mau humorada. A sua completa falta de atrativos até ajudava na profissão de detetive: ele não perdia tempo com ciúmes, dedicava-se integralmente à profissão mais perigosa do mundo. Esse crime estava atravessado em sua garganta, se não resolvesse aquele caso sua carreira estaria liquidada. Se fosse na Europa era mole, lá esses casos sempre sobram pro mordomo, mas aqui no Nordeste brasileiro só se acha mordomo em casa de deputado. Tava ruço! Não tinha nem mulher bonita envolvida, crimezinho sem vergonha esse que ele arrumou para desvendar. Entrou num buteco, tomou uma média de café com leite e deu uma cochilada no balcão, só voltaria pra casa quando o caso estivesse resolvido. Ele tava fedendo mais que barrão, três dias suando debaixo de uma capa de lã, ainda por cima usando luva e cachecol, o cheiro lembrava o banheiro do extinto bar Pinguim, prejudicava até as investigações. Entrou no cinema, talvez dali surgisse alguma ideia. Ia assistir “Ela e o Cavalo Desmarcado”, mas a sessão foi suspensa por causa do mau cheiro insuportável que invadiu a sala de projeção. Clarivaldo saiu retado, ele adorava filme de arte, mas logo seus pensamentos voltaram para o crime, e veio a ideia luminosa: sendo o velho Pedro o único presente na cena do crime, teria que informar mais alguma coisa nem que fosse debaixo de pau. O jeito era usar a força bruta, e aquele homem merecia por estar desviando a lei. Pegou o velho e levou pra uma construção afastada da cidade, era um lugar esquisito, só tinha um quarto onde mal cabia duas pessoas. Amarrou a “testemunha ocular”, tirou o cachecol e na hora que ia tirar a capa o velho pediu chorando: “Por favor, não tinha essa capa não. Eu confesso tudo! ”.
E foi assim que a verdade apareceu: o matador era J.W. Silva Júnior, herdeiro da fortuna dos Silva. O velho Pedro tinha sido comprado e mais uma vez um tubarão escaparia ileso se não fosse a interferência do detetive. Antes de ir à delegacia entregar o criminoso, resolveu visitá-lo em sua mansão. Lá foi recebido como um rei, e depois de uma hora trancado no escritório dos Silva, saiu como vice-presidente das indústrias da família e convencido de que o velho J.W., um espiritualista, estava coberto de razão ao argumentar que tem gente tão ruim que é melhor morrer pra ver se reencarna melhor. E pra não perder o prestígio como detetive, alterou o resultado da autópsia da vítima, que entrou para a história como o único homem que conseguiu se suicidar com uma arma a mais de trinta metros de distância. Clarivaldo depois que se vendeu perdeu o caráter por completo, aproveitou o embalo e vendeu a mulher para um circo e o filho pra um casal de gringos. Hoje ele gasta o dinheiro dos Silva na Europa, lá ele pode desfilar com sua fantasia de detetive sem incomodar ninguém, aquele “budúm de azedo” que tanto nos incomoda os gringos aceitam como cheiro natural dos nativos da América do Sul, e até acham sexy!

 

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