A caixa preta do Judiciário

Por Joaci Góes
Publicado na TB

Joaci GOES BOs infindáveis desdobramentos da Operação Lava-jato são a prova do agravamento da vocação patrimonialista histórica da Administração Pública Brasileira, nos dias correntes, diante da qual o conhecido diagnóstico de Raymundo Faoro, no clássico Os donos do poder, publicado em 1958, semelha uma pequena gripe diante de uma pneumonia avassaladora. Desgraçadamente, de cada pena que se puxa ora sai uma galinha, ora sai um galinheiro. E veja-se que estamos, apenas, no começo.

Tão logo o Brasil foi “premiado” para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, antecipamos que disso resultaria memorável crônica de escândalos, sob a forma de obras superfaturadas, como ocorreu, como se verá, quando houver espaço na agenda dos órgãos de fiscalização para apurar os números de mais esta fraude colossal que se praticou contra o Erário.

Seremos felizes, se as obras, em média, de ambos os mega-eventos esportivos tiverem custado, apenas, o dobro dos valores originariamente previstos. Dissemos, então, e repetimos agora, que o investimento prioritário no Brasil consiste em melhorar a qualidade moral e intelectual de nosso povo, aí incluídas todas as crianças dos mais longínquos e desassistidos ermos de nosso país continental. A verdade é que a integridade do povo brasileiro entrou em crise, como consequência do triunfo do crime e da impunidade.

O lado positivo dessa monumental crônica de escândalos, sem precedentes no mundo, é o embrionário e promissor protagonismo do Poder Judiciário brasileiro, historicamente um custoso aparato estatal a serviço da manutenção dos privilégios das classes dominantes.
Já não é sem tempo. Muito temido, sempre, mas pouco admirado e respeitado, o que tem salvado a reputação do Judiciário é o destaque individual de juízes que se elevam sobre os seus pares, tanto no plano moral quanto intelectual, como sabem e comentam, a meia-voz, os que mourejam na seara do Direito.

A crônica, porém, de julgadores que operam abaixo da dignidade da toga é tão antiga quanto nossa história. A iconoclástica poesia seiscentista de Gregório de Matos está repleta de denúncias de desvios de condutas desses profissionais que podem ser “maiores do que a coroa dos reis”, na medida em que atuem à altura da missão quase divinal que os homens lhes conferem, ou as personalidades mais abjetas e vis quando desservem e aviltam seu compromisso excelso, operando em favor de interesses que podem oscilar entre menores, ilegítimos e latrinários.

Não obstante o destaque recente de alguns juízes, a exemplo de Ayres Brito, Joaquim Barbosa e Sérgio Moro, que têm merecido o aplauso nacional, ao lado de muitos outros que exercem com discrição, dignidade e competência o seu sagrado mister, nos mais diferentes e distantes rincões deste imenso Brasil.

A verdade é que o ciclo de restauração da dignidade nacional não se completará sem que submetamos o Judiciário ao crivo da devassa de sua caixa preta, engordada pela ação leniente de sua estrutura disciplinar, presente, sobretudo, nas corregedorias, dominadas pelo malsão sentimento corporativista. Desse mal, aliás, padecem, praticamente, todos os órgãos disciplinares de classe no Brasil, como os que fiscalizam médicos e advogados.

Compare-se com a brasileira, a ordem dos advogados dos Estados Unidos, no conhecido episódio que segue: o vice-presidente de Richard Nixon, o advogado Spiro Agnew, foi também impedido de assumir a presidência do Colosso do Norte, por sonegação fiscal. Levado a julgamento pela Ordem dos Advogados, foi dela expulso, mesmo tendo invocado o nome de Deus para que lhe deixassem o direito de exercer a advocacia como o “único meio que me resta para sustentar a minha família”.

O resultado é que, com as exceções que confirmam a regra, cresce no Brasil o número de bandidos exercendo livremente a advocacia, jogando na lama o prestígio de uma vocação laureada por tão nobres atributos originais. É igualmente lamentável a tolerância com que a congênere entidade médica lida com os desvios de seus associados, em que, a comprovada marcação fraudada de presença em hospitais públicos figura como falta menor.

Essa abulia ética, porém, ocasiona malefícios extremos quando se adona do Judiciário, por comprometer a alma da Nação, como ocorre entre nós, resultando num voluntarismo patológico a ponto de levar juízes e promotores do estado do Paraná, com o rei nas barrigas, a exercerem um cerco dissuasor sobre jornalistas que denunciaram os excessos de remuneração de ambas as categorias no ano de 2015. Denunciada a intentona liberticida, Brasil e mundo afora, o STF, premido pela opinião pública, deu um basta à condenável postura de juízes e promotores do próspero estado do Sul.

É preciso, no entanto, ir muito mais longe. A maturidade plena do exercício da cidadania brasileira, consectário natural de uma democracia madura, só será alcançada quando submetermos à claridade solar a intimidade das práticas profissionais dos membros de nosso Poder Judiciário, da primeira à última instância.

Aí, então, o povo brasileiro poderá internalizar a compreensão e a prática de que integridade é obediência ao que não é exigido.

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